Veja o artigo original no link a seguir: https://www.apsf.org/article/national-partnership-for-maternal-safety-maternal-safety-bundles/
Os Estados Unidos são um dos oito países e a única nação desenvolvida em que a mortalidade materna aumentou desde 1990.1 As parturientes nesse país apresentam uma probabilidade três vezes maior de óbito devido a complicações relacionadas à gravidez do que as mulheres na Grã-Bretanha, na Alemanha ou no Japão.1 Esses achados são chocantes, principalmente considerando que antes de 1982, a mortalidade materna nos Estados Unidos havia reduzido drasticamente em relação ao século anterior2 devido aos avanços no atendimento médico, mais partos realizados no hospital por obstetras e melhor técnica de assepsia.3
Tradicionalmente, as causas mais comuns de óbito materno eram hemorragia, distúrbios de hipertensão, tromboembolismo e infecções.4,5 A proporção de óbitos por causas convencionais, incluindo as anestésicas, está diminuindo. O aumento do óbito materno foi atribuído aos problemas cardiovasculares e outras doenças coexistentes.5,6 Devido a esses aumentos na mortalidade e morbidade materna, é preciso agir urgentemente para identificar e avaliar as causas desses óbitos e identificar os fatores preveníveis. Essa necessidade resultou na fundação da National Partnership for Maternal Safety (NPMS), sediada no Council on Patient Safety in Women’s Healthcare. Sua missão é “melhorar constantemente a segurança das pacientes durante o atendimento por meio da colaboração multidisciplinar que gera a mudança cultural” e seu objetivo é reduzir em 50% a morbidade e mortalidade materna nos Estados Unidos. Para alcançar esse objetivo, a NPMS criou pacotes de intervenções para a segurança das pacientes, contendo recomendações baseadas em evidências para serem implementadas juntas, a fim de aprimorar os resultados.7 A NPMS começou criando materiais sobre três assuntos: hemorragia, hipertensão durante a gravidez e tromboembolismo, publicando as recomendações no site: https://www.safehealthcareforeverywoman.org.
Editorial – O que podemos esperar?
Faz quatro anos que o Boletim da APSF publicou nosso artigo sobre segurança materna com foco específico nos pacotes de intervenções para a segurança materna da NPMS e, infelizmente, nossas taxas desastrosas de mortalidade e morbidade materna não mudaram como esperávamos. Em nosso artigo original, mencionamos a taxa de mortalidade materna (TMM) dos Estados Unidos em 2007, que era de 12,7 a cada 100.000. Com grandes expectativas de uma melhora nesses números, esperamos ansiosamente durante uma década pelo National Vital Statistics Report (Relatório Nacional de Registro Civil) do National Center for Health Statistics (NCHS) com a TMM atualizada de 2018, que foi divulgada em janeiro de 2020. Infelizmente, nossa TMM aumentou para 17,4, deixando os EUA novamente na pior colocação entre os países desenvolvidos.8 Os dados mais recentes do NCHS são similares aos antigos. Mulheres acima de 40 anos correm maior risco de morrer, com uma taxa de 81,9 a cada 100.000 nascimentos, quase 8 vezes o risco de uma mulher de 25 anos. Mulheres afro-americanas correm um risco especialmente alto. A TMM delas é de 37,1 óbitos a cada 100.000 nascidos vivos, uma taxa 2,5 vezes a de mulheres brancas não hispânicas (14,7) e 3 vezes a de mulheres hispânicas (11,8).8 A idade avançada e a raça negra juntas apresentam um risco de alta letalidade: uma mulher negra acima dos 40 anos tem 1 chance entre 700 de morrer durante a internação para o parto.4
O que aconteceu? Por que nossa taxa de mortalidade não está diminuindo? Essas são as perguntas que epidemiologistas, médicos e pesquisadores estão fazendo. Na época da publicação do nosso artigo original, o Pacote de Intervenções para a Hemorragia Obstétrica,9 publicado em 2015, estava no processo de incorporação às maternidades em todo o país. Usando o pacote como um ponto de partida, os médicos mudaram a forma como gerenciavam a hemorragia materna ao criar kits de hemorragia, formar equipes de resposta, elaborar listas de verificação atualizadas e intervalos para lidar com uma hemorragia e estabelecer grupos e discussões focados nos problemas do sistema. Três anos são suficientes para que aconteça uma mudança na taxa de mortalidade? Talvez não. Primeiro, muitas maternidades não implantaram os protocolos recomendados nem aderiram rigorosamente às mudanças na prática. Em segundo lugar, três anos podem não ser suficientes para vermos uma diferença significativa nos resultados, mesmo após a ampla adoção dos pacotes. Apesar de os números do país continuarem os mesmos, temos evidências de que instituir os protocolos para hemorragia materna pode afetar de verdade a morbidade e mortalidade materna.10-12 A Califórnia impôs a incorporação do pacote para hemorragia em todas as maternidades há vários anos e demonstrou diferenças na gravidade das hemorragias, transfusões exigidas e talvez até mesmo nas histerectomias de emergência realizadas.13
Analisando mais de perto o Pregnancy Mortality Surveillance System (Sistema de Vigilância da Mortalidade durante a Gravidez) do Center for Disease Control and Prevention (CDC), conseguimos identificar um padrão notável na mortalidade, similar aos padrões do NCHS: várias minorias, principalmente negras não hispânicas e indianas americanas/nativas do Alasca não hispânicas, apresentam TMMs mais altas (40,8 e 29,7, respectivamente) do que os outros grupos raciais/étnicos.14 Muitos culpam a pobreza, a falta de escolaridade, o acesso limitado ao atendimento pré-natal e à má saúde física e mental por essa disparidade. Mas mesmo quando os pesquisadores analisam o status de escolaridade e socioeconômico, as mulheres negras continuam correndo maior risco de mortalidade. Na verdade, as mulheres afro-americanas com vantagens sociais e econômicas relativas, como curso superior, correm maior risco de apresentarem resultados negativos na gravidez do que as mulheres brancas sem essas vantagens.15 Pesquisadores e médicos têm dificuldades para explicar essa disparidade marcante entre mulheres brancas e negras. Uma hipótese é que o estresse crônico causado pelo racismo sistêmico incessante vivenciado pelas mulheres negras em nosso país cria uma tensão fisiológica que resulta em hipertensão e/ou pré-eclâmpsia, que sabemos que estão diretamente ligadas às taxas mais altas de óbito materno.16 Em outras palavras, os fatores de estresse vivenciados diariamente pelas mulheres negras nos Estados Unidos, simplesmente por serem negras, aumentam a probabilidade de doenças e óbito, e isso abrange o período da gravidez e do pós-parto. As mulheres negras também sofrem racismo por causa do preconceito implícito, fazendo com que os profissionais de saúde ignorem preocupações e sintomas legítimos nesse grupo.17 Às vezes a dor é vaga ou os sintomas são incertos, mas eles podem ser os sinais de alerta críticos que os médicos precisam perceber e abordar para evitar a próxima mortalidade materna.
Além das preocupações com as disparidades raciais, há também os problemas de abuso de opioides, saúde mental e suicídio. Infelizmente, o CDC não inclui os óbitos por overdose ou autoflagelação ao relatar a mortalidade materna pois considera esses óbitos associados à gravidez, e não relacionados à gravidez. Portanto, a maioria do nosso conhecimento sobre esses assuntos está limitada às informações coletadas na certidão de óbito, sendo difícil apurar se os óbitos por lesões como overdose de drogas, suicídio e homicídio durante a gravidez ou dentro de um ano após o parto devem ser considerados relacionados à gravidez. A epidemia de overdose por opioide foi identificada como uma causa importante da mortalidade em homens e mulheres nos EUA, e as mulheres grávidas podem correr um risco importante. Entre 2007 e 2016, a mortalidade associada à gravidez por overdose de medicamentos mais do que dobrou.18
No ano passado, um estudo retrospectivo e com grupos da população, que seguiu mais de um milhão de mulheres que deram à luz um recém-nascido vivo nos hospitais da Califórnia, demonstrou que os óbitos causados pelas drogas foi a segunda maior causa de óbito (3,68 por 100.000 pessoas/ano) e o suicídio foi a sétima maior causa (1,42 por 100.000 pessoas/ano) no período pós-parto. Nesse caso, os Estados Unidos não estão sozinhos. O Reino Unido relatou o suicídio como a principal causa de óbito associado à gravidez durante o pós-parto19 e o Japão luta contra o problema de saúde mental e o suicídio há muitos anos.20
Conforme a dependência de opioides cresce, nós, como anestesiologistas, continuaremos gerenciando os pacientes que abusam de opioides e, consequentemente, desenvolvem tolerância aos opioides e hiperalgesia. Geralmente, mulheres dependentes de opioides apresentam pontuações de dores mais altas no pós-parto do que as da população obstétrica em geral. É essencial que os médicos saibam que, apesar dos requisitos de doses mais altas, as mulheres dependentes de opioides não são imunes aos efeitos sedativos dos opioides. Os anestesiologistas enfrentam um equilíbrio desafiador entre a analgesia e a sedação adequadas e os efeitos sedativos respiratórios. Mulheres que abusam de substâncias correm maior risco de precisarem de cesariana e transfusão de sangue, além de correrem maior risco de óbito.21 Por outro lado, mulheres que não abusam de opioides correm menor risco de se tornarem dependentes de opioides se o médico prescrever esses medicamentos no pós-parto após a alta. Pacientes vulneráveis são aqueles com histórico de doença psiquiátrica, uso de outras substâncias ilícitas e distúrbios de dor crônica, como dor de cabeça ou dor nas costas crônica. Os profissionais de saúde devem estar conscientes dos atributos que colocam os pacientes em risco e enfatizar o manejo multimodal da dor para limitar a administração de opioides.22
Esses novos achados salientam que devemos auxiliar o CDC e outros comitês de mortalidade materna a ir além das causas tradicionais de óbito materno e incluir os óbitos associados à gravidez em seus dados. Se não contabilizarmos esses óbitos, é impossível preveni-los. Em segundo lugar, devemos fazer mais para abordar a saúde mental e o abuso de substâncias, pois se relacionam ao óbito materno em geral.
Temos muito trabalho a fazer. Será necessário um esforço considerável de todos os médicos para incorporar os pacotes de intervenções conforme forem publicados. Para combater a taxa crescente de morbidade e mortalidade, a NPMS continua realizando seu trabalho valioso. Em nosso artigo original, discutimos a publicação do Pacote de Intervenções para a Hemorragia Obstétrica em 20159 e o Pacote de Intervenções para o Tromboembolismo Venoso em 2016.23 Desde então, a NPMS publicou o Pacote de Intervenções para Disparidades Raciais e Étnicas15 e o Pacote de Intervenções para Atendimento Obstétrico de Mulheres com Problemas de Abuso de Opioides.24 Todos os profissionais que participam do atendimento às mulheres grávidas devem implementar esses pacotes. Vários outros pacotes de intervenções foram lançados: em janeiro de 2017, o Pacote de Intervenções para a Prevenção de Infecção no Sítio Cirúrgico25, seguido pelo Pacote de Intervenções para a Saúde Mental Materna.26 Em agosto de 2017, o Pacote de Intervenções para a Hipertensão Grave durante a Gravidez foi divulgado27 e, em 2018, veio o Pacote de Intervenções para a Redução Segura de Cesarianas Primárias (Figura 1).28
Figura 1: Pacotes de intervenções para a segurança materna do Council on Patient Safety in Women’s Health Care
Hemorragia obstétrica |
Hipertensão grave durante a gravidez |
Tromboembolismo venoso materno |
Atendimento obstétrico de mulheres com problemas de abuso de opioides |
Redução das disparidades raciais e étnicas no periparto |
Prevenção de infecção no sítio cirúrgico |
Saúde mental materna: depressão e ansiedade |
Redução segura de cesariana primária |
https://safehealthcareforeverywoman.org/
Apesar da noção amplamente divulgada de que a TMM dos Estados Unidos é a maior entre os países desenvolvidos e de que os esforços combinados estão sendo envidados nacionalmente para fazer mudanças reais, os números mais recentes do NCHS e do CDC revelam uma piora contínua da nossa TMM.8 Talvez as mães dos EUA sejam mais velhas e estejam mais doentes do que as mães do resto do mundo ou talvez nossas estatísticas estejam atrasadas e vejamos uma melhora nos números na próxima década. De qualquer forma, não podemos nos tornar complacentes e parar nossa ação em um pacote de intervenções para a hemorragia. Como anestesiologistas, é nosso dever continuar agindo ativamente na implantação de todos os pacotes de intervenções maternas. Agora mais do que nunca, devemos agir como médicos do periparto e nos juntar aos outros profissionais de saúde para otimizar a segurança materna.
Jennifer Banayan, MD, é professora associada no Departamento de Anestesiologia da Northwestern University.
Barbara Scavone, MD, é professora no Departamento de Anestesia e Medicina Intensiva e no Departamento de Obstetrícia e Ginecologia e é chefe da seção de Anestesia Obstétrica na University of Chicago Medicine.
As autoras não apresentam conflitos de interesse. Jennifer Banayan é editora associada do Boletim da APSF.
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