Perda visual pós-operatória (POVL)

Lorri A. Lee, MD

Veja o artigo original no link a seguir: https://www.apsf.org/article/induced-hypotension-tied-to-possible-vision-impairments/

Talvez o maior ponto forte da APSF seja a capacidade de reunir múltiplas disciplinas médicas e suas sociedades afiliadas, organizações e setores de atendimento médico para colaborar com as questões envolvendo a segurança do paciente. A APSF intensificou seu papel nessa rede informal ao alertar os profissionais de saúde, em 1998, sobre um aparente aumento nos casos de complicações devastadoras de perda visual pós-operatória (POVL), especialmente associada à cirurgia de coluna na posição prona.1 Esses casos estavam ocorrendo durante um aumento de procedimentos instrumentais de fusão espinhal, que estavam associados a volumes mais altos de perda de sangue e tempos de operação mais longos. Embora a POVL seja reconhecida há muito tempo na literatura desde a década de 1950, a maioria dos profissionais de saúde achava que ela estava relacionada a infartos do córtex visual (cegueira cortical) ou à compressão do globo ocular, uma lesão que causa oclusão da artéria central da retina (CRAO, Figura 1). Do início a meados da década de 1990, cada vez mais casos de POVL após cirurgia de coluna na posição prona eram publicados e associados à lesão do nervo ótico, conhecida como neuropatia ótica isquêmica (ION, Figura 1). No entanto, a conscientização geral sobre essa complicação ainda era ínfima. Naquela época, pouquíssimos profissionais da comunidade anestésica tinham consciência de que a cegueira podia ocorrer nesses casos sem o infarto cortical ou a compressão do globo.2 A falta de conscientização estava inquestionavelmente relacionada à incidência de ION associada à cirurgia de fusão espinhal. Embora estudos multicêntricos menores tenham identificado uma incidência de 0,1%,3 os dados nacionais revelaram uma taxa muito menor: 0,017% de 1996 a 2005.4

Figura 1: Fotografias do fundo do olho mostrando A) disco ótico normal ou neuropatia ótica isquêmica posterior em estágio inicial; B) ligeiro inchaço do disco na neuropatia ótica isquêmica anterior em estágio inicial; C) atrofia do nervo ótico na neuropatia ótica isquêmica anterior ou posterior em estágio avançado; e D) embranquecimento da retina, ponto vermelho-cereja (mácula) e artérias atenuadas na oclusão da artéria central da retina.<br />Fotografias gentilmente cedidas por Valerie Biousse, MD, e Nancy J. Newman, MD, Emory University School of Medicine, Atlanta, Geórgia.

Figura 1: Fotografias do fundo do olho mostrando A) disco ótico normal ou neuropatia ótica isquêmica posterior em estágio inicial; B) ligeiro inchaço do disco na neuropatia ótica isquêmica anterior em estágio inicial; C) atrofia do nervo ótico na neuropatia ótica isquêmica anterior ou posterior em estágio avançado; e D) embranquecimento da retina, ponto vermelho-cereja (mácula) e artérias atenuadas na oclusão da artéria central da retina.
Fotografias gentilmente cedidas por Valerie Biousse, MD, e Nancy J. Newman, MD, Emory University School of Medicine, Atlanta, Geórgia.

Ann Lofsky, anestesiologista e ex-consultora do Comitê Executivo da APSF, e Mark Gorney, internista, escreveram um artigo sobre POVL em 1998 para o Boletim da APSF.1 Eles eram afiliados à The Doctors Company, uma empresa de seguro profissional de negligência médica, e como pareceristas das reclamações de responsabilidade profissional, eles tiveram a oportunidade de identificar tendências nas complicações perioperatórias que envolviam cuidados anestésicos, bem antes de serem disponibilizadas para análises nos bancos de dados nacionais. Eles publicaram uma breve descrição de dois casos (que eram compostos por 12 reclamações similares) de POVL causada por ION associada à cirurgia de coluna na posição prona. Eles sugeriram que a combinação de hipotensão deliberada, anemia e duração prolongada na posição prona com pressão venosa elevada eram os fatores com maior probabilidade de causar esse problema. Eles observaram um caso que ocorreu com pinos de Mayfield na cabeça, uma descoberta que eliminou a compressão do globo ocular como possível causa desse caso específico.

A American Society of Anesthesiology (ASA), por meio do seu Closed Claims Project e do Comitê de Responsabilidade Profissional, estava enfrentando esse problema simultaneamente ao criar seu POVL Registry. Esse registro foi desenvolvido para o envio voluntário de casos anônimos, de modo que os dados mais detalhados desses casos de POVL alarmantes pudessem ser coletados o mais rápido possível. Artigos subsequentes publicados no Boletim da APSF e no Boletim da ASA destacaram os resultados preliminares do POVL Registry da ASA. Esses artigos não só difundiram as informações mais recentes disponíveis sobre essa complicação, como também incentivaram os profissionais de saúde a enviar voluntariamente quaisquer casos ao POVL Registry da ASA. O sucesso do POVL Registry estava parcialmente relacionado aos impactos que o Boletim da APSF e o Boletim da ASA causavam na comunidade de cuidados anestésicos.

Até 2006, o POVL Registry havia coletado 93 casos de POVL associados à cirurgia de coluna, sendo 83 casos diagnosticados com ION e 10 com CRAO.5 As características perioperatórias dos pacientes diagnosticados com CRAO e ION eram visivelmente diferentes. Dos casos de CRAO, todos tiveram perda visual unilateral, 70% tiveram trauma periocular e nenhum usou pinos de Mayfield. Por outro lado, 55% dos casos de ION apresentaram perda visual bilateral, quase 1/5 usou pinos de Mayfield e apenas 1 de 83 teve trauma periocular. A perda de sangue estimada, o volume administrado subsequentemente e a duração dos procedimentos foram extremamente maiores nos casos de ION em relação aos casos de CRAO. Esses achados estavam de acordo com a teoria de que, naquela época, a ION estava associada às causas sistêmicas, e não à compressão direta do apoio para a cabeça. Além disso, 2/3 dos pacientes com ION estavam relativamente saudáveis, com um status físico da ASA de 1 a 2, e a idade mínima dos pacientes era de 16 anos. Parecia que qualquer pessoa estava vulnerável a essa complicação catastrófica. A hipotensão e a anemia não foram identificadas consistentemente nos casos de ION, embora esses fatores não pudessem ser eliminados como causas contributivas.

O Comitê de Padrões e Parâmetros de Prática da ASA utilizou rapidamente essas informações para desenvolver sua primeira recomendação de práticas sobre essa complicação, com atualizações posteriores em 2012 e 2019.6-8 Especialistas em neuro-oftalmologia, anestesiologia, neurocirurgia e cirurgia ortopédica de coluna foram incluídos nessa força-tarefa para elaborar a recomendação de práticas. Vale observar que uma das primeiras recomendações era considerar o consentimento dos pacientes em relação a essa complicação. Isso se tornou um assunto muito controverso entre cirurgiões de coluna e anestesiologistas, pois os cirurgiões estavam preocupados que os pacientes poderiam se assustar desnecessariamente com uma complicação que muitos nunca haviam vivenciado durante a carreira. Conforme a conscientização sobre essa lesão cresceu, a colaboração entre a ASA, a APSF e as sociedades profissionais de neurocirurgia e ortopedia associadas à cirurgia de coluna abordou o problema do consentimento nas recomendações de práticas. Posteriormente, a APSF realizou uma conferência especial multidisciplinar sobre a POVL em 2012, focando no consentimento pré-operatório dos pacientes que passam por cirurgia de coluna em relação ao risco de POVL. Uma declaração consensual elaborada na conferência foi publicada em 2013. Dois vídeos educacionais foram preparados pela APSF em 2014, esclarecendo a justificativa do consentimento pré-operatório em relação a essa complicação, bem como simulações sobre como os cirurgiões e anestesiologistas poderiam abordar os pacientes para obter o consentimento à POVL.9,10

Outro integrante desse grupo colaborativo porém informal de organizações de saúde interessadas em determinar a etiologia e a prevenção da ION era a Society of Neurosurgical Anesthesia and Critical Care (SNACC, atualmente a Society for Neuroscience in Anesthesiology and Critical Care). Os membros da SNACC do país inteiro demonstraram grande interesse nessa complicação e formaram o grupo de estudo sobre POVL. Esse grupo realizou um estudo de controle de caso com o Closed Claims Project da ASA, usando casos de POVL do POVL Registry da ASA e controles das instituições acadêmicas dos membros da SNACC. Os achados desse estudo foram publicados em 2012 e identificaram seis fatores de risco associados à ION após a cirurgia na posição prona. Esses fatores de risco incluíam sexo masculino, obesidade, uso de apoio abdominal (Wilson), maior duração da anestesia (valor alternativo para a duração operatória), maior perda de sangue estimada e uma porcentagem mais baixa de coloide utilizado na administração de fluidos não sanguíneos (Tabela 1).11 Esse estudo continua contendo os melhores dados que temos sobre o assunto devido ao grande número de casos com um diagnóstico oftalmológico ocorrendo após o mesmo procedimento e aos dados perioperatórios detalhados que estão ausentes dos bancos de dados nacionais. Entretanto, o estudo apresenta limitações consideráveis por conta da metodologia de controle de casos e do envio voluntário de casos ao POVL Registry da ASA. Os resultados do estudo foram usados para orientar as atualizações das recomendações de práticas da ASA em relação a essa complicação, com a atualização e as recomendações mais recentes publicadas em 2019 (https://anesthesiology.pubs.asahq.org/article.aspx?articleid=27183482718348).8

Tabela 1: Fatores de risco da neuropatia ótica isquêmica associada à cirurgia de fusão espinhal9

1. Sexo masculino
2. Obesidade
3. Apoio para abdômen (Wilson)
4. Maior duração da anestesia
5. Maior perda de sangue estimada
6. Baixa porcentagem de coloide na administração de fluidos não sanguíneos

Houve um interesse expressivo nessa complicação e inúmeros relatórios de casos, séries de casos multicêntricos retrospectivos, estudos de controle de caso, estudos de bancos de dados nacionais e revisões de literatura foram publicados sobre a POVL. Esses artigos forneceram mais informações úteis sobre essa complicação às recomendações de práticas da ASA e mantiveram um alto nível de interesse em determinar a etiologia, a prevenção e o tratamento da POVL. A principal teoria sobre a etiologia da ION associada à cirurgia de fusão espinhal é que a pressão venosa elevada na posição prona por um longo período é um fator contribuinte.11,12 A obesidade com a compressão do abdômen na posição prona e o uso do apoio de abdômen (Wilson), que coloca a cabeça em uma posição mais dependente, exacerbam a congestão venosa na cabeça na posição prona, além de terem sido identificados como fatores de risco para essa complicação.11 Outra contribuição para essa teoria não comprovada é o risco aumentado de ION em outros procedimentos com pressão venosa elevada na cabeça, como dissecção radical bilateral do pescoço e procedimentos robóticos com a cabeça inclinada para baixo.

Após esses enormes esforços de inúmeras vias, os dados nacionais sugeriram que conseguimos uma história de sucesso. Dados da Nationwide Inpatient Database demonstraram uma redução de 2,7 vezes nos casos de ION associados à cirurgia de fusão espinhal de 1998 a 2012.13 Não se sabe se essa melhora estava relacionada ao incansável trabalho da ASA, do Closed Claims Project, da SNACC, da APSF, da North American Neuro-Ophthalmology Society, da American Association of Neurologic Surgeons, da North American Spine Society e de outros inúmeros profissionais de saúde. Michael Todd, MD, sugeriu em seu editorial que várias mudanças podem ter ocorrido durante esse período para justificar o sucesso, incluindo menor uso de hipotensão deliberada, menor uso do apoio de abdômen (Wilson) pelos cirurgiões de coluna e, talvez, tempos de operação ligeiramente mais curtos.14 Além disso, os cirurgiões adotaram cada vez mais técnicas minimamente invasivas associadas à menor perda de sangue estimada.15

Mais pesquisas sobre a etiologia dessa complicação são essenciais. Entretanto, elas são prejudicadas pela baixa incidência dessa complicação, pelas limitações éticas de estudos de intervenção em humanos e pela falta de um modelo animal adequado. Todos estão vulneráveis a essa complicação devido às situações cirúrgicas perioperatórias similares e ao gerenciamento da anestesia ou alguns fatores anatômicos, fisiológicos e genéticos exclusivos contribuem para essa lesão? Esses fatores não seriam identificados em um estudo de controle de caso nem em vários outros tipos de estudos. Pesquisas sobre as possíveis opções de tratamento da ION e outras causas da POVL são igualmente importantes, pois a POVL pode ocorrer após vários outros tipos de operações, incluindo cirurgia cardíaca, vascular, dissecção da cabeça e do pescoço, cirurgia ortopédica, cirurgia geral e cirurgia robótica (prostatectomia e histerectomia), além de cirurgias em pacientes com hemorragia gastrointestinal severa e outras doenças graves. Nenhum tratamento benéfico comprovado para a ION perioperatória foi identificado, embora muitos consultores de neuro-oftalmologia tenham recomendado a normalização da pressão sanguínea, a prevenção da anemia e o posicionamento da cabeça levantada se houver edema facial considerável. É preciso comemorar essa história de sucesso quase total, mas ainda há muito trabalho a ser feito.

Para finalizar, eu gostaria de reconhecer os participantes e líderes da pesquisa e dos esforços educacionais. A lista das pessoas que contribuíram para esses esforços com certeza é muito maior do que esse artigo, então por limitação de espaço, terei que incluir apenas uma pequena parte dos indivíduos, como Steven Roth, MD, Michael M. Todd, MD, Karen B. Domino, MD, MPH, Karen L. Posner, MD, Nancy J. Newman, MD, Nayak L. Polissar, PhD, Frederick W. Cheney, MD, Robert K. Stoelting, MD, Mark A. Warner, MD, Ann Lofsky, MD, Richard T. Connis, MD, Robert A. Caplan MD e os membros do POVL Study Group da SNACC.

 

Lorri A. Lee, MD, é anestesiologista em Richland, Washington, ex-diretora do POVL Registry da ASA e integrante da Task Force on Perioperative Visual Loss da ASA.


O autor não apresenta conflitos de interesse.


Referências

  1. Lofsky AS, Gorney M. Induced hypotension tied to possible vision impairments. APSF Newsletter. 1998;13:16–17. https://www.apsf.org/article/induced-hypotension-tied-to-possible-vision-impairments/ Accessed August 12, 2020.
  2. Williams EL, Hart WM, Tempelhoff R. Postoperative ischemic optic neuropathy. Anesth Analg. 1995;80:1018–1029.
  3. Stevens WR, Glazer PA, Kelley SD, et al. Ophthalmic complications after spinal surgery. Spine. 1997;22:1319–1324.
  4. Shen Y, Drum M, Roth S. The prevalence of perioperative visual loss in the United States: a 10-year study from 1996 to 2005 of spinal, orthopedic, cardiac, and general surgery. Anesth Analg. 2009;109:1534–1545.
  5. Lee LA, Roth S, Posner KL, et al. The American Society of Anesthesiologists’ Postoperative Visual Loss Registry: analysis of 93 spine surgery cases with postoperative visual loss. Anesthesiology. 2006;105:652–659.
  6. Warner, MA, Arens, JF, Connis, RT, et al. Practice advisory for perioperative visual loss associated with spine surgery. A report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Perioperative Blindness. Anesthesiology. 2006;104:1319–1328.
  7. American Society of Anesthesiologists Task Force on Perioperative Visual Loss. Practice advisory for perioperative visual loss associated with spine surgery: an updated report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Perioperative Visual Loss. Anesthesiology. 2012;116:274–285.
  8. American Society of Anesthesiologists Task Force on Perioperative Visual Loss. Practice advisory for perioperative visual loss associated with spine surgery 2019: an updated report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Perioperative Visual Loss, the North American Neuro-Ophthalmology Society, and the Society for Neuroscience in Anesthesiology and Critical Care. Anesthesiology. 2019;130:12–30.
  9. APSF Perioperative visual loss (POVL) video. https://www.apsf.org/videos/perioperative-visual-loss-povl-video/. Published 2014. Accessed July 22, 2020.
  10. APSF Simulated informed consent scenarios for patients at risk for perioperative visual loss (POVL) video. https://www.apsf.org/videos/simulated-informed-consent-scenarios-for-patients-at-risk-for-perioperative-visual-loss-povl-video/. Published 2014. Accessed July 22, 2020.
  11. The Postoperative Visual Loss Study Group. Risk factors associated with ischemic optic neuropathy after spinal fusion surgery. Anesthesiology. 2012;116:15–24.
  12. Biousse V, Newman NJ. Ischemic optic neuropathies. N Eng J Med. 2015;272:2428–2436.
  13. Rubin DS, Parakati I, Lee LA, et al. Perioperative visual loss in spine fusion surgery: ischemic optic neuropathy in the United States from 1998 to 2012 in the nationwide inpatient sample. Anesthesiology. 2016;125:457–464.
  14. Todd MM. Good news: but why is the incidence of postoperative ischemic optic neuropathy falling? Anesthesiology. 2016;125:445–448.
  15. Goldstein CL, Macwan K, Sundararajan K, et al. Perioperative outcomes and adverse events of minimally invasive versus open posterior lumbar fusion: meta-analysis and systematic review. J Neurosurg Spine. 2016;24:416–27.