Em 1986, os padrões de monitorização da ASA inauguraram uma nova era de cuidados de saúde e aprimoraram a segurança do paciente

John H. Eichhorn, MD

Veja o artigo original no link a seguir: https://www.apsf.org/article/asa-adopts-basic-monitoring-standards/

Estatísticas de saúde digitalOs anestesiologistas que se formaram após o fim da década de 1980 nunca trabalharam sem os “monitores de rotina da ASA”, geralmente representados nos registros de anestesia por uma caixa de seleção indicando a conformidade com os Padrões de Monitorização Anestésica Básica da American Society of Anesthesiologists, atestando a aplicação e o uso correto da monitorização de rotina essencial.

Esses padrões, definidores de precedentes, foram os primeiros requisitos detalhados e explicitados para a prática de procedimentos diários no atendimento médico moderno. A história de como eles foram concretizados e suas consequências para uma maior segurança de pacientes anestesiados aparecem em uma das primeiras edições do Boletim da APSF.1

O Conselho dos Representantes da ASA adotou os padrões de monitorização como política oficial no congresso de outubro de 1986. Apesar da comunicação prévia, das discussões e da divulgação, os organizadores e patrocinadores da resolução ficaram preocupados no início com a possibilidade de haver oposição aos padrões propostos simplesmente porque as pessoas (especialmente os médicos) geralmente não gostam de receber instruções. Entretanto, os elementos de conduta propostos para anestesias em cirurgias (exceto epidurais para parto) eram tão lógicos e óbvios que já eram colocados em prática pela maioria dos anestesiologistas dos EUA, cada um à sua maneira. A resolução foi aprovada com facilidade.

Os padrões originais

Elaborados e oferecidos aos associados da ASA pelo novíssimo Comitê de Padrões de Cuidados, os padrões de monitorização originais da ASA eram simples e diretos. Eles começavam com algumas ressalvas reconhecendo que poderia haver circunstâncias em que os padrões não poderiam ser seguidos. Também contavam com definições explícitas das palavras “contínuo” e “constante” para que todos entendessem perfeitamente os requisitos. O primeiro padrão exigia que a equipe de anestesia qualificada estivesse presente na sala durante a realização de todos os procedimentos anestésicos. Embora isso possa ser óbvio para os anestesiologistas de 2020, a verdade é que, na década de 1980, alguns profissionais de anestesia deixavam o paciente em um ventilador na sala de cirurgia para fazer uma pausa ou providenciar medicamentos e/ou equipamentos. Esse hábito antigo levou a acidentes tristes (e custosos) que lesionaram pacientes e ganharam a mídia. Isso incentivou o comitê de padrões da ASA a deixar claro que essa prática seria totalmente proibida.

Naquela época, um ponto fundamental que pode não ter sido enfatizado o suficiente à ampla comunidade de cuidados anestésicos era a distinção importantíssima entre comportamento e tecnologia. A meta do comportamento, que passou a ser conhecido como “monitorização segura” do paciente anestesiado, era alertar com o máximo de antecedência sobre desdobramentos perigosos e imprevistos durante a anestesia que, se não identificados ou não abordados, causariam lesões ao paciente (definição de “evento crítico”). Esses alertas oportunos permitiam a realização do diagnóstico e do tratamento antes da lesão. Embora os dispositivos tecnológicos tenham sido prescritos ou incentivados como métodos para influenciar os comportamentos e, compreensivelmente, tenham se tornado o foco da implantação dos padrões, o objetivo fundamental era criar um ambiente de atenção constante e contínua aos principais elementos de monitorização. Portanto, com os padrões de monitorização, os profissionais de anestesia abandonaram o velho e estereotipado hábito de a cada cinco minutos verificar o local da anestesia para ver se estava tudo bem, anotar à mão os sinais vitais no registro de anestesia e, para alguns profissionais, voltar a fazer palavras-cruzadas, ler sobre o mercado de ações ou fazer qualquer outra coisa para passar o tempo (conforme satirizado em tirinhas ou por médicos cirurgiões).

O segundo padrão consistia em uma seção dedicada a cada um dos quatro elementos da monitorização clássica: oxigenação, ventilação, circulação e temperatura. Para fins de esclarecimento, cada seção declarava primeiro o objetivo da monitorização e, em seguida, os métodos especificados para alcançar esse objetivo.

Inicialmente, a monitorização da oxigenação exigia um analisador de oxigênio de gás inspirado. Ocorreram acidentes trágicos devido à interrupção acidental do fluxo de O2, em decorrência de erro humano ou falha no fornecimento. Assim, a oxigenação do sangue era o foco principal do desejo pela maior antecedência possível de aviso sobre o surgimento de hipoxemia. Os “sinais qualitativos” (cor do paciente) eram mencionados, e a oximetria de pulso só foi “incentivada” na versão original de 1986. De certa forma, isso era controverso, porque alguns anestesiologistas já reconheciam o imenso valor da oximetria de pulso e achavam que ela deveria ser obrigatória. Os instrumentos estavam começando a ser usados de forma mais ampla no começo de 1986. Para evitar impor o uso de uma tecnologia que ainda não estava disponível universalmente e sabendo que ela logo se tornaria o padrão obrigatório, o comitê decidiu esperar a primeira revisão inevitável dos padrões, que aconteceu em 1989, quando a oximetria de pulso contínua durante os cuidados anestésicos se tornou o padrão oficial de cuidados na profissão.

A monitorização da ventilação, que é o cerne dos cuidados anestésicos, recebeu a maior atenção nos padrões originais, que exigiam a avaliação qualitativa constante da ventilação. Mais uma vez, a tecnologia da capnografia estava apenas começando a ser disponibilizada mais amplamente, e seu uso para a verificação da colocação correta do tubo endotraqueal e a monitorização contínua da ventilação era incentivado, mas não imposto oficialmente (o que foi feito nos anos seguintes). Além disso, com base em vários relatos de acidentes com lesões por anestesia, o uso de um monitor desconectado do ventilador com um alarme sonoro era obrigatório como o padrão de cuidados durante a ventilação mecânica. Finalmente, como prenúncio do que viria nos anos posteriores, determinou-se que “a adequação da ventilação deve ser avaliada, no mínimo, por meio da observação contínua dos sinais clínicos qualitativos” durante os cuidados anestésicos regionais e monitorizados.

A monitorização da circulação incluía a exibição obrigatória e contínua do traçado do ECG, a medição da pressão sanguínea e da frequência cardíaca pelo menos a cada 5 minutos e a avaliação constante da função circulatória de várias formas, mas principalmente incluindo a menção do pletismógrafo do traçado do oxímetro de pulso.

Naquela época e por vários anos, a monitorização da temperatura era o padrão mais confuso. Era necessário um meio prontamente disponível para monitorizar a temperatura junto com a seguinte determinação: “Quando há pretensão, previsão ou suspeita de mudanças na temperatura corporal, a temperatura deve ser medida”.

A origem dos padrões

Em meados da década de 1970, houve uma explosão de ações judiciais por negligência médica nos EUA (a “crise da negligência”) que gerou acordos e sentenças de júri extremamente custosos e dramáticos devido aos acidentes anestésicos. Esses casos receberam publicidade generalizada, especialmente de um programa especial da ABC Television, em 1982, sobre catástrofes da anestesia: “The Deep Sleep: 6000 Will Die or Suffer Brain Damage” (O sono profundo: 6.000 pessoas morrerão ou sofrerão lesão cerebral). O presidente da ASA em 1984, o falecido Ellison C. (“Jeep”) Pierce, Jr., MD, de Harvard (e, posteriormente, o primeiro Presidente da APSF), estava extremamente preocupado com esse problema, principalmente com as fatalidades da anestesia causadas pelo reconhecimento muito tardio da colocação acidentalmente incorreta dos tubos endotraqueais no esôfago. Ele propôs e iniciou a criação do comitê de padrões da ASA, insistindo que esses problemas fossem abordados com urgência. Burton S. Epstein, MD, da George Washington, foi o Diretor, e John H. Eichhorn, MD, de Harvard, foi o Secretário que apresentaram ao comitê um artigo que ainda não tinha sido publicado, “Padrões de monitorização de Harvard”2, como exemplo de uma abordagem adotada na tentativa de reduzir acidentes anestésicos graves e preveníveis. No começo da década de 1980, em nove hospitais-escola de Harvard, os anestesiologistas representavam 3% do corpo docente (comum naquela época), mas eram responsáveis por mais de 12% das compensações de seguro devido a negligência, o que se aproximava das estatísticas nacionais.3 Esse perigo excessivo levou à criação de um “comitê de gerenciamento de riscos de Harvard”, comandado por John Eichhorn, que criou um conjunto de padrões de anestesia em 1985 como uma reação às estatísticas, e esses padrões de Harvard se tornaram um modelo para os esforços subsequentes da ASA. Os dois comitês consideravam crucial conscientizar os anestesiologistas sobre a necessidade de uma mudança de comportamento para ajudar a prevenir acidentes com lesões. Assim, primeiro em Harvard e depois na ASA, os esforços de monitorização intraoperatória propostos não foram chamados de “recomendações” ou “diretrizes”, mas de “padrões de cuidados”. Esse fato gerou consequências médicas e jurídicas enormes e foi inédito no sistema de saúde dos EUA. Quando a ASA publicou os “padrões” detalhados e obrigatórios para a prática, qualquer acidente que causasse alguma lesão ao paciente devido à não conformidade intencional com esses padrões levaria à perda automática de uma ação legal por negligência. Isso serviu de incentivo claro para todos os profissionais implantarem a monitorização descrita pelos padrões.

Conforme observado, muitos, se não a maioria, dos anestesiologistas já haviam adotado suas próprias versões de várias ideias. Os padrões publicados organizaram e esclareceram os comportamentos obrigatórios, pressionaram os profissionais relutantes ou resistentes a seguirem as diretrizes e, o que é o mais importante, apresentaram o conceito de aumentar significativamente a sensibilidade e a especificidade dos sentidos humanos por meio da aplicação das tecnologias de monitorização eletrônica de oximetria de pulso e capnografia que, na época, eram inéditas e inovadoras. A meta dessa abordagem organizada era ter um aviso com a maior antecedência possível de qualquer desdobramento clínico perigoso, permitindo tempo suficiente para a realização do diagnóstico e da medicação antes da ocorrência de alguma lesão ao paciente. A ideia fundamental desses padrões foi um divisor de águas para a profissão dos anestesiologistas, como declarou em 2015 o falecido Paul G. Barash, de Yale.4

Validação

No fim da década de 1980, concluiu-se rapidamente que nunca haveria um ensaio clínico prospectivo, controlado, randomizado, com “p<0,05” para testar a eficácia da “monitorização da segurança” conforme previsto pelos padrões de monitorização. Os grupos teriam que ser formados por muitas pessoas para oferecer dados estatísticos significativos em relação a eventos de frequência muito baixa, mas, principalmente, o grupo de controle “sem monitorização” seria antiético, além da impossibilidade de receber o consentimento informado do paciente. No entanto, uma análise retrospectiva detalhada realizada em 19895 sobre os acidentes anestésicos catastróficos em 1.001.000 pacientes ASA I e II nos hospitais de Harvard, que suscitaram as preocupações originais, sugeriu que a grande maioria dos acidentes com lesão (representando 88% dos pagamentos de seguro saúde por negligência) antes da implantação da “monitorização de segurança” especificada nos padrões teria sido evitada por meio dessas estratégias. Uma análise posterior6 incluiu outros pacientes e demonstrou uma redução de mais de cinco vezes (para basicamente zero) nos acidentes catastróficos após a adoção e implantação dos padrões. Entretanto, a validação provavelmente mais significativa dos conceitos de monitorização de segurança nos padrões de monitorização foi a redução drástica das despesas de seguros saúde por negligência dos anestesiologistas. Essa tendência aconteceu no país inteiro7 e, em 1990, a diretoria da ASA sugeriu o seguinte: “O cumprimento dos padrões da ASA para monitorização intraoperatória básica e uso de oximetria de pulso e capnografia pode reduzir consideravelmente as despesas dos anestesiologistas que negociam novas políticas.”7 O impacto foi sentido principalmente em Harvard, onde, em 1989, as despesas com seguro saúde por negligência foram reduzidas 33% em um ano.3,8 No geral, entre 1986 e 1991 (como eu mesmo vivenciei), houve uma redução de 66% nos prêmios de seguro saúde pagos pelo corpo docente de anestesia. Como os atuários das seguradoras são inerentemente não beneficentes, essa diminuição drástica deveu-se ao simples fato de haver muito menos acidentes anestésicos e de menor gravidade, configurando uma forma de “comprovação” (além do p<0,05) de que os conceitos de monitorização melhoraram a segurança do paciente em anestesia.

Evolução subsequente

John H. Eichhorn, MD

John H. Eichhorn, MD

Os padrões da ASA para monitorização intraoperatória básica foram ligeiramente ampliados e ajustados várias vezes nos mais de 30 anos desde que foram adotados, incluindo a alteração do nome para monitorização “anestésica”9 para refletir o escopo geral, principalmente a obrigatoriedade da capnografia contínua durante a sedação moderada ou profunda (novamente refletindo a preeminência da ventilação nos cuidados anestésicos). Porém, todos os elementos principais originais e seus impactos ainda persistem. Em parte, por causa da imensidade de consequências médicas e jurídicas, é altamente improvável que a ASA crie novos “padrões de cuidados” detalhados no futuro. O comitê dos padrões da ASA agora se chama “Comitê dos Padrões e Parâmetros da Prática”. A abordagem atual para desenvolvimento e implantação dos parâmetros da prática (que, algumas pessoas alegam, ser tratados pelos advogados de negligência dos demandantes como padrões de cuidados) é ferrenhamente baseada em evidências, envolvendo uma pesquisa completa das publicações na Internet, profunda análise e meta-análise estatística profissional, além de análise e debate meticulosos pelos subcomitês e pelo Comitê dos Padrões e Parâmetros da Prática e pelo Conselho de Representantes da ASA. Quanto ao futuro, pode-se imaginar que uma próxima geração de tecnologia de monitorização do cérebro/CNS consiga promover uma anestesia geral mais tranquila usando menos medicamentos anestésicos e proporcionar recuperação mais rápida, com menor incidência de distúrbios cognitivos. Posteriormente, isso poderá evoluir e chegar ao status de desempenho e confiança que atenderá aos critérios rigorosos de aprovação em um parâmetro da prática da ASA (podendo até mesmo estabelecer um novo padrão de cuidados de fato). Se assim for, isso certamente aparecerá na capa do Boletim da APSF, como aconteceu com os padrões de monitorização originais em 1987. Entretanto, os tempos evoluíram e não enfrentamos uma situação semelhante aos processos ad hoc da década de 1980, gerados pela necessidade urgente de resolver uma crise existente. Esse processo funcionou bem naquela época. Os resultados definitivos, ainda relevantes no mundo de hoje, mudaram a prática fundamental da anestesia para sempre e, consequentemente, melhoraram a segurança do paciente.

 

John Eichhorn, MD, foi o Editor-Fundador e publicador no Boletim da APSF. Ele mora em San Jose, Califórnia e é professor aposentado de Anestesiologia e integrante do Conselho Editorial da APSF.


O autor não apresenta conflitos de interesse.


Referências

  1. Eichhorn JH. ASA adopts basic monitoring standards. APSF Newsletter. 1987;2:1. https://www.apsf.org/article/asa-adopts-basic-monitoring-standards/ Accessed August 12, 2020.
  2. Eichhorn JH, Cooper JB, Cullen DJ, et al. Standards for patient monitoring during anesthesia at Harvard Medical School. JAMA. 1986;256:1017–1020.
  3. Pierce EC. Anesthesiologists’ malpractice premiums declining. APSF Newsletter. 1989;4:1. https://www.apsf.org/article/anesthesiologists-malpractice-premiums-declining/ Accessed August 12, 2020.
  4. Barash P, Bieterman K, Hershey D. Game changers: The 20 most important anesthesia articles ever published. Anesth Analg. 2015;120:663–670.
  5. Eichhorn JH. Prevention of intraoperative anesthesia accidents and related severe injury through safety monitoring. Anesthesiology. 1989;70:572–577.
  6. Eichhorn JH. Monitoring standards: role of monitoring in reducing risk of anesthesia. Problems in Anesthesia. 2001; 13:430–443.
  7. Turpin SD. Anesthesiologists’ claims, insurance premiums reduced: improved safety cited. APSF Newsletter. 1990;5:1. https://www.apsf.org/article/anesthesiologists-claims-insurance-premiums-reduced-improved-safety-cited/ Accessed August 12, 2020.
  8. Holzer JE. Risk manager notes improvement in anesthesia losses. APSF Newsletter. 1989;4:3. https://www.apsf.org/article/risk-manager-notes-improvement-in-anesthesia-losses/ Accessed August 12, 2020.
  9. American Society of Anesthesiologists. Standards for Basic Anesthetic Monitoring, Last Amended: October 28, 2015. https://www.asahq.org/standards-and-guidelines/standards-for-basic-anesthetic-monitoring. Accessed June 29, 2020.