Os profissionais de anestesia devem navegar pelas placas tectônicas em colisão entre segurança do paciente e eficiência do centro cirúrgico. Mas nossa especialidade não é a única a enfrentar esse desafio. Erik Hollnagel descreve o princípio do dilema entre eficiência e rigorosidade na engenharia (ETTO)13 que reconhece a troca inviolável entre eficiência de um lado e rigorosidade do outro, análogo ao debate dos profissionais de medicina sobre eficiência na sala de cirurgia vs. segurança do paciente. Em qualquer setor, se as forças se desalinham, é mais provável que aconteça um acidente com danos ou problemas. Portanto, devemos continuar nossa supervisão enquanto envidamos esforços para evitar a normalização de desvios, manter o equilíbrio entre eficiência e rigorosidade e evitar o possível prejuízo da nossa herança e responsabilidade educacional. A ameaça espinhosa e, até agora, inflexível da pressão por produção tem sido um foco da APSF por mais de 20 anos e certamente continuará sendo no futuro.
Veja o artigo original no link a seguir: https://www.apsf.org/article/special-issue-production-pressure-does-the-pressure-to-do-more-faster-with-less-endanger-patients-potential-risks-to-patient-safety-examined-by-apsf-panel/
Introdução[Then]
Motivada pelas preocupações crescentes dos profissionais de anestesia e pela discussão sistemática de 1994 sobre a pressão por produção na prática anestésica,1 em 1998, a APSF abordou esse conceito pela primeira vez no 27º vídeo da série educacional produzida e distribuída nacionalmente pela APSF em seus primeiros anos. O reconhecimento da importância deste tópico e o interesse nele levaram a uma publicação abrangente no início de 2001: Boletim da APSF—Edição Especial: Pressão por produção – A pressão para fazer mais, mais rápido e com menos recursos coloca os pacientes em risco? Possíveis riscos à segurança do paciente analisados pelo Painel da APSF. Os tópicos incluíam várias discussões fundamentadas sobre a segurança do paciente e a pressão por produção: perspectiva do paciente, prática acadêmica, prática particular, avaliação pré-operatória, programação e equipe, UTI, enfermagem de UTI, indústria e administração. Apesar desses esforços, o problema vem se intensificando nas últimas duas décadas devido a prioridades conflitantes e às complexidades envolvidas.
[Now]
A cultura atual da sala de cirurgia enaltece a velocidade e a multidisciplinaridade, pois exige simultaneamente a redução de custos. É fato que o mantra clássico da NASA e da cultura empresarial, “melhor, mais rápido e mais barato”, tornou-se a regra para a maioria dos gerentes e administradores das salas de cirurgia. Devido às pressões universais em relação a orçamentos hospitalares ao redor do mundo e ao reconhecimento de que as salas de cirurgia são onerosas, pagam altos salários e consomem muitos recursos, os diretores acreditam que existem poucas opções e que precisam priorizar uma eficiência maior (atividade por tempo de unidade) na sala de cirurgia. Uma consequência desses esforços à equipe cirúrgica é a evolução constante da pressão por produção — companheira constante da maioria dos médicos.1 Na verdade, há dez anos, durante a edição comemorativa de 25 anos da Anesthesia Patient Safety Foundation (APSF), John Eichhorn, MD,2 relembrou os anestesiologistas sobre dois princípios fundamentais: que erros humanos básicos e passíveis de prevenção ainda ocorreriam e que a pressão por produção na prática da anestesia ameaça as evoluções anteriores em relação à segurança. Essas palavras são um presságio do futuro.… no passado e atualmente.
A pressão por produção pode ser definida como uma pressão ou métricas e incentivos explícitos ou subliminares colocados sobre os profissionais de anestesia para que considerem a produção como a maior prioridade: “fazer mais com menos”. É claro que quase todos os profissionais de anestesia vivenciam o contexto cultural e econômico atual da sala de cirurgia em que mais serviços clínicos de melhor qualidade são esperados concomitantemente com o menor consumo de recursos (pessoais e financeiros) para prestá-los. As consequências dessas pressões são multidimensionais, mas destacaremos o impacto da pressão por produção em três áreas principais da segurança do paciente:
- Normalização do desvio
- Estresse e burnout dos profissionais
- Impacto na instrução e no treinamento.
Normalização do desvio3
“MELHOR, MAIS RÁPIDO, MAIS BARATO”
—NASA
Por que a NASA continuou lançando o ônibus espacial Challenger mesmo com a documentação de problemas de erosão do anel em O inúmeras vezes antes do fatídico lançamento no frio daquele janeiro de 1986? E por que a NASA continuou lançando o ônibus espacial Columbia sabendo que o isolamento de espuma batia sempre em áreas vulneráveis do veículo anos antes de seu acidente fatal? Uma explicação é que esses incidentes haviam sido “normalizados” em tantas ocorrências e em tantos anos até que os gerentes e engenheiros começaram a crer que essas falhas eram esperadas e, portanto, aceitáveis.3 Diane Vaughan descreveu esse comportamento como a “Normalização do Desvio”.4 Esse processo gradual causa uma perda de confiança dos procedimentos normais que nunca seriam tolerados se propostos em um único avanço abrupto. Em vez disso, pequenos desvios graduais são observados e tolerados. Quando não acontece um acidente, eles são “normalizados”.4
Na verdade, quando o ônibus espacial foi projetado pela primeira vez, não era permitida a possibilidade de o Challenger ser lançado em temperaturas abaixo do congelamento, sabendo que os anéis propulsores em O do foguete seriam enfraquecidos, contraídos e vazariam nessas temperaturas fora da faixa de tolerância. Quando esses eventos aconteceram pela primeira vez, é óbvio que as consequências para a segurança foram reconhecidas. No entanto, as análises das falhas concluíram que o veículo poderia tolerar essas situações anormais. Gerentes e engenheiros decidiram implantar um reparo temporário ou simplesmente aceitar o risco. Essa abordagem abriu um precedente para a aceitação de violações de segurança como desvios técnicos que podem ser tolerados e gerenciados. Com a recorrência dos problemas e o ônibus espacial sendo lançado continuamente, a falácia de que os erros eram aceitáveis foi reforçada.
O mais grave é que a normalização do processo de desvio viola a cultura de segurança e se aplica igualmente à prática da anestesia.3,5 A pressão por produção é mencionada com frequência como um grande motivador do trabalho durante o cansaço, da criação de “gambiarras” nos sistemas de segurança, da ultrapassagem dos limites das diretrizes hospitalares ou departamentais e do atendimento acelerado do paciente ao tomar atalhos para cumprir a programação.6
De forma geral e ao longo do tempo, essas práticas se tornam um caminho perigoso de cada vez mais tolerância a erros pequenos e da aceitação de riscos, sempre pensando na eficiência e no cumprimento dos horários programados. Esse pensamento tóxico pode se transformar em uma mentalidade que exige evidências de que esses atalhos realmente prejudicariam o paciente em vez de exigir provas de que esses desvios são seguros e o paciente não corre um risco maior.
Na verdade, a maioria das instituições médicas não percebe quando está pendendo para a normalização de desvios perigosos. Mas se os médicos da linha de frente refletirem rapidamente, eles identificarão várias “normalizações” em seus procedimentos e práticas no centro médico, com certeza motivados pelas expectativas cada vez maiores de cumprir o prazo, reduzir o tempo de turnover e eliminar atrasos, ou pior, cancelamentos de casos, tudo isso gastando menos recursos e reduzindo os custos. As estratégias para diminuir essas práticas irregulares começam com a criação de uma cultura de comunicação aberta para identificar e eliminar os desvios antes que sejam normalizados. A análise de modos e efeitos de falha (FMEA) é um método comprovado e proativo de avaliar as políticas e os procedimentos que podem precisar ser alterados antes de o paciente ser prejudicado.7
Burnout
“Era a estação da luz, era a estação das trevas; era a primavera da esperança, era o inverno do desespero.”
—Charles Dickens
Os profissionais da medicina vivem tempos desafiadores com uma mudança constante do inimigo na prática diária, por exemplo, a COVID-19. Além disso, a anestesiologia está passando por um período de fusões, consolidação de práticas e uma tendência a contratos de trabalho que afetam drasticamente a autonomia pessoal. Pagamentos agrupados, reembolsos cada vez menores, prontuários médicos eletrônicos (EHRs) bagunçados e peculiares e exigências regulamentares (por exemplo, envio de estatísticas clínicas) costumam esgotar o cotidiano. Nesse contexto, vivenciamos uma demanda crescente pelos serviços de anestesia enquanto enfrentamos uma escassez nacional de enfermeiros e médicos especializados. Adicionalmente, nossas práticas são inundadas por pressões internas e externas para alcançar ou superar as referências nacionais dos indicadores de qualidade hospitalar e níveis de satisfação/fidelidade dos pacientes para competir efetivamente com os concorrentes locais.8 Assim, não é de se surpreender que na última década, os profissionais de saúde estão cada vez mais esgotados, e os anestesiologistas são um exemplo vivo dessa epidemia que não para de crescer.9
O que é o burnout e o que contribui para que ele aconteça? O burnout está relacionado à depressão, mas as duas síndromes não são a mesma coisa. O burnout é um padrão de sintomas, e os profissionais de saúde relatam exaustão física e emocional, cinismo decorrente de despersonalização e esforço profissional reduzido ou até mesmo absenteísmo.7,8 Isso causa consequências pessoais e profissionais importantes. Por exemplo, estudos mostram que os profissionais com burnout são mais propensos a terminar relacionamentos e a abusar de álcool e drogas, além de apresentarem um risco maior de depressão e até mesmo suicídio.10
Inúmeras pesquisas identificaram vários fatores que contribuem para o burnout, como carga de trabalho exagerada, desequilíbrio entre vida pessoal e profissional e perda de respeito profissional, autonomia e comunidade (Tabela 1). Os anestesiologistas informam taxas de burnout acima da média em relação a algumas outras especialidades. Na verdade, 50% dos profissionais de anestesia relataram burnout em 2017, um aumento acentuado em relação a 2011 e uma taxa duas vezes mais alta do que a população adulta ativa em geral.10
Tabela 1: Elementos que podem contribuir para o burnout dos anestesiologistas
• Pressão por produção |
• Demandas profissionais exageradas e cada vez maiores |
• Redução da autonomia |
• Falta de reconhecimento e respeito no trabalho |
• Perda de respeito profissional por parte dos pacientes |
• Falta de equilíbrio entre vida pessoal e profissional |
• Conflito entre valores profissionais/pessoais e organizacionais |
• Sobrecarga burocrática e prontuários eletrônicos disfuncionais |
• Regulamentações governamentais |
• Insegurança no trabalho |
Nos últimos anos, houve um aumento considerável de casos, horas e esforço no trabalho por cada profissional nos locais de trabalho. Os dados da Medical Group Management Association (MGMA) evidenciam esse fato como uma tendência constante em toda a especialidade. Os anestesiologistas estão trabalhando mais horas, em mais lugares, mais tempo na frente de prontuários eletrônicos e têm menos controle sobre os próprios horários. Além desse desafio, há o fato de o equilíbrio entre vida pessoal e profissional ser uma prioridade para a geração Y, que também é o segmento que mais cresce entre a nossa profissão. O burnout faz com que os profissionais sejam menos produtivos, apresentem maior probabilidade de trocarem de local de trabalho e de reduzirem o esforço profissional nos próximos anos. Não é de se estranhar que tudo isso possa causar um impacto bastante negativo na segurança do paciente. Os profissionais de saúde que sofrem de burnout podem prestar um atendimento de qualidade inferior, associado a pontuações ruins de satisfação do paciente, e ficando mais suscetíveis a cometer erros médicos.7,8 Portanto, as dificuldades dos profissionais de saúde são um indicador de qualidade que deve ser avaliado nas instituições médicas.10
Impacto na educação
“A educação não é encher um balde, mas acender uma chama.”
–W. B. Yeats
A sabedoria popular diz que a pressão econômica (ou seja, a causada pela produção) sobre os docentes na sala de cirurgia afeta negativamente a instrução dos residentes de anestesiologia e o ensino baseado em casos reais no leito do paciente. Atualmente, existem apenas alguns dados que respaldam diretamente essa tese. Uma pesquisa nacional alemã sobre a formação em anestesiologia confirma que 96% dos participantes identificaram “carga de trabalho diária”, “pressão causada pelo tempo” e “falta de tempo” como os principais obstáculos ao ensino.11 Um estudo transversal mais recente, realizado em quatro centros acadêmicos nos EUA, constatou que 1/3 dos docentes identificou “tempo insuficiente”, “monitorar várias salas” e “ênfase na eficiência” como os principais fatores que inviabilizam o ensinamento ideal dos residentes de anestesiologia.12 De qualquer forma, é reconfortante saber que a grande maioria do corpo docente retorna frequentemente à sala de cirurgia durante a fase de manutenção da anestesia para dar aulas e demonstrar um alto grau de envolvimento com a função de professor de anestesiologia.
Resumo
Os profissionais de anestesia devem navegar pelas placas tectônicas em colisão entre segurança do paciente e eficiência do centro cirúrgico. Mas nossa especialidade não é a única a enfrentar esse desafio. Erik Hollnagel descreve o princípio do dilema entre eficiência e rigorosidade na engenharia (ETTO)13 que reconhece a troca inviolável entre eficiência de um lado e rigorosidade do outro, análogo ao debate dos profissionais de medicina sobre eficiência na sala de cirurgia vs. segurança do paciente. Em qualquer setor, se as forças se desalinham, é mais provável que aconteça um acidente com danos ou problemas. Portanto, devemos continuar nossa supervisão enquanto envidamos esforços para evitar a normalização de desvios, manter o equilíbrio entre eficiência e rigorosidade e evitar o possível prejuízo da nossa herança e responsabilidade educacional. A ameaça espinhosa e, até agora, inflexível da pressão por produção tem sido um foco da APSF por mais de 20 anos e certamente continuará sendo no futuro.
Richard C. Prielipp, MD, é professor de anestesiologia na University of Minnesota, Mineápolis. Ele é membro do Conselho de Diretores da APSF.
O autor não apresenta conflitos de interesse.
Referências
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- 13. Hollnagel E, Wears RL, Braithwaite J. From safety-I to safety-II: a white paper. the resilient health care net: published simultaneously by the University of Southern Denmark, University of Florida, USA, and Macquarie University, Australia. 2005 https://www.england.nhs.uk/signuptosafety/wp-content/uploads/sites/16/2015/10/safety-1-safety-2-whte-papr.pdf Accessed August 25, 2020.