Reconhecimento e combate ao viés cognitivo em anestesiologia: implicações para a segurança do paciente

George Tewfik, MD, MBA, FASA, CPE, MSBA; Stephen Rivoli, DO, MPH, MA, CPHQ, CPPS; Monica W. Harbell, MD, FASA

CENÁRIO DO CASO

DoutorAo ouvir uma chamada no pager para ajuda em anestesia de emergência, a anestesiologista correu para a sala de cirurgia onde havia um caso de otorrinolaringologia em andamento. Ao chegar, ela notou um paciente adormecido e virado 90 graus de costas para o aparelho de anestesia, com um laringoscópio posicionado e os seguintes sinais vitais: 84% no oxímetro de pulso e pressão sanguínea de 80/53 mmHg. Ela ouviu o alarme do ventilador pulmonar e podia ver a mensagem “pico de pressão inspiratória alto” piscando na parte superior da tela. O anestesiologista da sala de cirurgia contou como o pico de pressão inspiratória subiu rapidamente e a ventilação se tornou difícil nos últimos minutos. O paciente tinha um histórico de asma e apesar dos broncodilatadores e do aumento do anestésico, o broncoespasmo persistia. Outro anestesiologista auscultou o paciente e relatou ausência de chiado e de qualquer movimento de ar audível. Enquanto isso, outro colega preparava a epinefrina. A anestesiologista que respondeu ao chamado de emergência examinou o paciente, observando desde o tubo endotraqueal até o circuito da máquina. Ao olhar para a boca do paciente, ela viu que o pequeno tubo endotraqueal, fora da linha de visão da equipe de anestesia, estava dobrado. Ela desfez a dobra e o alarme agudo do ventilador silenciou. À medida que a saturação de oxigênio subia rapidamente, as expressões dos seus colegas eram tanto de gratidão como de vergonha. Como eles não conseguiram ver um problema tão simples? Os outros profissionais que atenderam à emergência perceberam a concentração em ajudar o colega e não questionaram o diagnóstico de broncoespasmo. O anestesiologista da sala de cirurgia observou que o histórico, o momento e os sinais do evento o levaram a acreditar em um broncoespasmo. O segundo anestesiologista, ao processar novas informações sem contexto, poderia diagnosticar corretamente o problema. Sem que soubessem disso, esses anestesiologistas foram vítimas de um viés cognitivo.

CONTEXTO

Os vieses cognitivos afetam os médicos quando permitem que o profissional crie a própria realidade subjetiva, o que pode alterar a percepção que têm de um ponto de dado. Esse “padrão sistemático de desvio de uma norma estabelecida ou racionalidade no julgamento” pode levar a alterações na prática de uma pessoa e afetar seu comportamento.8 É importante notar que o desvio psicológico como resultado de um viés cognitivo afeta todos os seres humanos – não apenas os profissionais médicos – e pode causar erros no atendimento médico personalizado, afetando um indivíduo, ou nas políticas de saúde pública, afetando populações inteiras.9

Os efeitos do viés cognitivo sobre os erros na medicina há muito foram entendidos como afetando a segurança do paciente.10,11 O viés cognitivo pode causar impactos significativos na tomada de decisões por profissionais de saúde, incluindo anestesiologistas, potencialmente comprometendo a vida dos pacientes.11,12 Ao entender primeiro os viés cognitivos e como eles afetam nossa prática, podemos reduzir seus efeitos e melhorar a segurança do paciente.

No caso apresentado, vários vieses cognitivos estavam em jogo, incluindo o viés da disponibilidade e o efeito adesão. O viés da disponibilidade descreve um fenômeno psicológico no qual as decisões são tomadas com base nos dados disponíveis no momento, sem a busca de dados adicionais.13 O efeito adesão, também conhecido como impulso de diagnóstico, refere-se à incapacidade de considerar outras opções após ter feito um diagnóstico ou chegado a uma determinação.14 Há vários vieses frequentemente observados que podem afetar os anestesiologistas (Tabela 1).12,15

Tabela 1: Uma amostragem do viés cognitivo que pode ocorrer na anestesiologia e na prática da medicina perioperatória, incluindo descrições e exemplos de cada tipo.

Tabela 1: Uma amostragem do viés cognitivo que pode ocorrer na anestesiologia e na prática da medicina perioperatória, incluindo descrições e exemplos de cada tipo.

OS EFEITOS DOS VIESES COGNITIVOS NOS ERROS

Os erros que ocorrem no período perioperatório muitas vezes resultam de um viés cognitivo, com estudos citando que até 32,7% de todas as complicações pós-operatórias são afetadas pelo menos em parte por vieses.16 Tipos específicos de vieses cognitivos foram identificados como fatores que contribuem para erros nos cuidados anestésicos. O viés de confirmação, por exemplo, é o ato de observar ou buscar informações para confirmar a própria opinião, em vez de buscar informações adicionais que possam colocar em dúvida aquilo em que se acredita no momento. Um estudo de uma série de intubações esofágicas que resultaram em resultados catastróficos para os pacientes17 identificou que sinais como observação do movimento torácico, auscultação do tórax, embaçamento no tubo endotraqueal e percepção das cordas vocais de passagem do tubo foram usados para “confirmar” a opinião do profissional de que a intubação havia sido bem sucedida, em vez da observação do traçado definitivo da capnografia para confirmar a colocação do tubo.18

Diferentes fatores contribuem para o viés cognitivo em profissionais de saúde. Eles geralmente podem ser categorizados como fatores que afetam o profissional de saúde, fatores que afetam o paciente, fatores sistêmicos e fatores externos (Tabela 2). Por exemplo, fatores como sobrecarga cognitiva, fadiga e privação de sono demonstraram ter um efeito negativo nos profissionais de saúde, aumentando o risco de vieses cognitivos que levam a erros e lapsos na segurança do paciente.19 Além disso, variados fatores irracionais influenciam a tomada de decisões clínicas em anestesiologia, incluindo enquadramento, preferências pessoais, emoções, feedback e aversão à perda.20

Tabela 2: Fatores que podem causar vieses cognitivos em anestesiologia, incluindo aqueles diretamente atribuídos ao paciente, ao médico ou ao sistema. Todos eles são potencialmente afetados por fatores externos, como excesso de confiança e aversão a perdas.

Tabela 2: Fatores que podem causar vieses cognitivos em anestesiologia, incluindo aqueles diretamente atribuídos ao paciente, ao médico ou ao sistema. Todos eles são potencialmente afetados por fatores externos, como excesso de confiança e aversão a perdas.

COMO REDUZIR O VIÉS COGNITIVO

É importante reduzir erros diagnósticos atribuídos a vieses cognitivos, quando possível. As principais categorias de intervenções cognitivas eficazes são: 1) melhoria de conhecimento e experiência através de ferramentas como simulação, feedback e treinamento; 2) melhoria do raciocínio e da capacidade de tomada de decisões usando ferramentas como prática reflexiva e metacognição; e 3) melhoria da assistência na tomada de decisões usando recursos como registros eletrônicos de saúde e apoio integrado à decisão.21

É provável que a abordagem mais importante para reduzir o viés cognitivo seja promover a conscientização dessas variáveis de confusão na equipe médica. A conscientização dos anestesiologistas pode ser alcançada utilizando materiais de aprendizagem, publicações acadêmicas, técnicas didáticas e simulações.22 Erros de por obsessão, por exemplo, são um tipo de erro em que o foco é colocado em um único aspecto da situação, ignorando outras informações mais relevantes.22 Esses erros podem ser causados pelo viés de ancoragem e podem ser evitados com a conscientização de que podem ser cometidos e uso de estratégias como descartar a pior hipótese, entender que as primeiras suposições podem estar erradas, considerar os artefatos como a última explicação de um problema e evitar o uso de uma conclusão anterior com os membros atuais da equipe.22 No entanto, a conscientização por si só não é suficiente para combater um viés. Publicações anteriores descrevem o “viés do ponto cego”, um fenômeno em que a pessoa experimenta uma falsa sensação de invulnerabilidade, mais comum em profissionais com maior sofisticação cognitiva.20

As estratégias que podem ser empregadas para reduzir o viés cognitivo podem muitas vezes ser categorizadas em intervenções que afetam pessoalmente o médico versus aquelas que são implementadas de forma sistemática ou em todo o sistema (Figura 1). As estratégias individuais incluem treinamento e educação, técnicas de atenção plena e a consideração deliberada de alternativas.23 As estratégias sistemáticas incluem o uso de checklists, a tomada de decisões em equipe e sistemas de apoio à decisão clínica, como lembretes integrados em registros eletrônicos de saúde.23 As checklists para tomada de decisões, modeladas segundo as listas usadas na aviação, reduzem o risco de eventos adversos na sala de cirurgia.22 Em um cenário simulado, as checklists mostraram uma redução de seis vezes na não adesão a passos críticos no manejo de uma crise, mesmo após ajustes de aprendizagem ou de efeito de fadiga.23

Figura 1: Estratégias que podem permitir que os profissionais médicos combatam o viés através de prevenção, reconhecimento e intervenções ativas para diminuir seus efeitos em tempo real.

Figura 1: Estratégias que podem permitir que os profissionais médicos combatam o viés através de prevenção, reconhecimento e intervenções ativas para diminuir seus efeitos em tempo real.

Infelizmente, há limitações com todas essas estratégias, especificamente, a falta de provas objetivas para apoiar vários desses métodos. Não há evidências publicadas sustentando técnicas como sinal vermelho e sinal verde, destinadas a determinar quando a coleta de informações pode ser interrompida. Da mesma forma, o uso de “opções imperdíveis”, onde se considera os diagnósticos que devem ser avaliados antes de chegar a um diagnóstico final, também não são sustentadas por evidências publicadas. Além disso, parece haver uma separação entre a eficácia de tais estratégias para melhorar a perspicácia diagnóstica e o tratamento ou os resultados do paciente. Por exemplo, apesar da implementação de sistemas de apoio à decisão clínica, como os que visam aumentar a adesão às melhores práticas e reduzir erros medicamentosos, há poucas evidências de que eles melhorem o diagnóstico clínico.23 Isso pode ser devido ao estudo limitado de seu efeito sobre os resultados dos pacientes, já que muitos estudos de sistemas de apoio à decisão clínica se concentram especificamente em métricas para avaliar se novas intervenções atingem um desfecho desejado, como por exemplo, o pedido de um exame de laboratório ou estudo de imagem, em vez do impacto sobre o diagnóstico clínico.24

COMO COMBATER O VIÉS COGNITIVO NA ANESTESIOLOGIA

Defendemos uma abordagem em duas etapas para reconhecer e combater o preconceito cognitivo na prática diária da anestesiologia. O primeiro passo é o conhecimento e a conscientização. É extremamente importante que os anestesiologistas entendam que esses vieses existem e que podem afetar o atendimento ao paciente. É fundamental lembrar que o viés frequentemente afeta como os médicos detectam mudanças nos pacientes, chegam a um diagnóstico de condições clínicas e tratam patologias. Embora a conscientização por si só não seja suficiente para combater o viés, é um primeiro passo importante para abordar a questão e desenvolver estratégias para estar ciente de seu impacto no cuidado e na segurança do paciente.

Em seguida, é importante combater o viés tanto em nível pessoal quanto em todo o sistema, o que muitas vezes exigirá intervenções personalizadas. As soluções não são universais e devem ser individualizadas para diferentes instituições, equipes e situações. Por exemplo, o efeito adesão pode ser combatido com sucesso em uma instituição pela prática de consultas intraoperatórias entre colegas. Por outro lado, em uma instituição menor, com equipes limitadas, o impulso de diagnóstico pode ser evitado com mais sucesso usando checklists ou suporte cognitivo em colaboração com outros profissionais perioperatórios. Em nível departamental e institucional, o papel que o viés cognitivo pode ter desempenhado em um evento adverso deve ser considerado em cada revisão do evento. Os grupos de anestesia devem considerar o uso de simulações tanto para estagiários quanto para médicos praticantes, criando cenários educacionais para demonstrar o viés cognitivo em ação e discutir estratégias para combatê-lo. As simulações têm se mostrado particularmente úteis na modelagem da consciência situacional baseada em equipe e na facilitação da comunicação interdisciplinar – ambas ferramentas importantes para combater o viés cognitivo, especialmente em situações desafiadoras.25 Embora não exista uma abordagem universal que evite o viés cognitivo na prática da medicina perioperatória, uma combinação de vigilância e intervenções ponderadas oferece uma oportunidade significativa para melhorar a qualidade dos serviços de anestesia e a segurança do paciente.

Os profissionais de anestesia são suscetíveis a vieses cognitivos que podem impactar negativamente o atendimento ao paciente e levar a erros médicos. O profissional de anestesiologia necessita de uma grande preparação para emergências, que tendem a ocorrer com pouca frequência, mas rapidamente. É importante não negligenciar a preparação mental e sistemática necessária para evitar vieses cognitivos. Os anestesiologistas devem receber treinamento para reconhecer e combater vieses cognitivos. Estratégias para combater vieses cognitivos devem ser implementadas tanto a nível individual quanto institucional para melhorar a segurança do paciente.

 

George Tewfik, MD, MBA, FASA, CPE, MSBA, é professor associado em Anestesiologia na Rutgers New Jersey Medical School em Newark, NJ.

Stephen Rivoli, DO, MPH, CPHQ, CPPS, é professor assistente em Anestesiologia na NYU Grossman School of Medicine em New York, NY.

Monica W. Harbell, MD, FASA, é professora assistente em Anestesiologia na Mayo Clinic em Phoenix, AZ.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

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