INTRODUÇÃO
Já faz mais de 20 anos que o Instituto de Medicina publicou o relatório de mudança de paradigma “Errar é Humano”, que concluiu que 98.000 mortes ocorreram em hospitais a cada ano devido a erros no atendimento.1 Embora o número exato da mortalidade relacionada à anestesia seja controverso, não há dúvida de que nossa especialidade obteve ganhos notáveis na segurança do paciente nas últimas duas décadas devido a melhorias no treinamento, equipamentos e protocolos padronizados. O manejo seguro de pacientes de transplante hepático ortotópico (THO), entretanto, continua a ser um dos casos perioperatórios mais desafiadores para profissionais de anestesia. O THO envolve colaboração multidisciplinar, que inclui equipes cirúrgicas, de anestesia, de enfermagem, bem como perfusionistas e outras equipes especializadas (por exemplo, banco de sangue, diálise e UTI). O procedimento é tecnicamente complexo, e o curso intraoperatório está associado a instabilidade hemodinâmica, desequilíbrio ácido-básico e desarranjo metabólico, complicações de coagulação, grandes deslocamentos de fluidos, além de levar a um número maior de mortes intraoperatórias que qualquer outro procedimento cirúrgico.2
Embora o sucesso no transplante de fígado tenha levado à realização de mais cirurgias desse tipo a cada ano, o número de órgãos doados atingiu um patamar estável. A adoção do modelo MELD (Model for End-Stage Liver Disease ) em 2002 levou a um transplante que prioriza os casos mais graves (Tabela 1). Espera-se que os pacientes com alta pontuação MELD tenham níveis anormais de bilirrubina, creatinina, INR, sódio, ou uma combinação de cada um deles (ver Tabela 1). Anormalidades em cada um desses componentes do MELD estão associadas a alto risco perioperatório em estudos anteriores,3 afetando profundamente os pacientes compatíveis para transplante hepático, particularmente em áreas populosas onde há mais centros de transplante. Essa evolução na seleção de pacientes e a crescente gravidade da doença em pacientes de transplante de fígado têm colocado vários desafios perioperatórios aos médicos que cuidam deles.4 Os pacientes candidatos a transplante de fígado têm pontuações MELD mais altas e doenças hepáticas mais graves, idade mais avançada e comorbidades pré-operatórias, além de mais anormalidades renais e eletrolíticas e requisitos mais elevados para transfusões intraoperatórias e vasopressores do que os pacientes de transplante de fígado de vinte anos atrás, na era pré-MELD.3
Tabela 1: Componentes da pontuação MELD e previsão de mortalidade de três meses5
As decisões de quais pacientes incluir nas listas de espera de transplante hoje também podem ser distorcidas pela intensa competição em áreas populosas onde há mais centros de transplante. Nossa instituição, a University of Southern California (USC), é um centro de transplante de alto volume na área metropolitana de Los Angeles, onde há três centros de transplante no raio de 32 quilômetros. O volume combinado de transplantes de fígado realizados no Keck Hospital e no Children’s Hospital Los Angeles (CHLA) no último ano representa o segundo maior programa de transplante de fígado do país, de acordo com dados da United Network for Organ Sharing. Com a concorrência local e o prestígio em jogo, entende-se que os centros possam ser motivados a realizar mais transplantes, resultando em pacientes mais desafiadores na lista de espera. No entanto, a cirurgia de transplante de fígado hoje desafia a capacidade total dos sistemas e processos envolvidos na segurança do paciente. Este artigo descreve alguns dos processos elaborados em nossa instituição e como eles contribuem para a segurança do paciente em um campo que está se tornando cada vez mais desafiador.
FORMAÇÃO DE EQUIPES DE ANESTESIA PARA TRANSPLANTE DE FÍGADO
Em 2011, a Organ Procurement e Transplant Network/United Network for Organ Sharing (OPTN/UNOS) exigiu que cada centro de transplante nomeasse um diretor de anestesia para transplantes de fígado.7 Essa declaração de um órgão governamental e regulador conhecido nacionalmente foi o primeiro passo para reconhecer a anestesiologia de transplante de fígado como uma subespecialidade independente de anestesiologia. A partir daí, seguiu-se a formação de equipes de anestesistas para transplante de fígado e bolsas de estudo nessa área. O valor de equipes de anestesia específicas foi ainda mais sustentado por evidências mostrando que equipes de transplante dedicadas reduziram a transfusão, o tempo de ventilação pós-operatória, o tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e a mortalidade perioperatória.8
Além de fornecer cuidados clínicos, os membros da equipe de anestesia para transplante de fígado estão envolvidos em várias funções perioperatórias, como comitês de seleção de pacientes. O comitê multidisciplinar para transplantes inclui coordenadores, cirurgiões, hepatologistas, nefrologistas, infectologistas, anestesiologistas e assistentes sociais. Nesses comitês semanais, discutimos o histórico hepático do paciente e outros problemas médicos. Em seguida, abordamos questões de apoio social, abuso de substâncias e finanças. A partir daqui, o processo de tomada de decisão envolve uma análise ordenada dos possíveis motivos de exclusão. O envolvimento rotineiro da equipe de anestesia no processo de seleção nos permite avaliar formalmente os pacientes antes que eles se apresentem para o transplante de fígado. Se necessário, o paciente é encaminhado à nossa clínica pré-operatória para que um membro da equipe de anestesia possa avaliar melhor seu estado físico para o transplante.
VERIFICAÇÃO PRÉ-TRANSPLANTE E TESTE DE ABO
Devido à complexidade da coordenação no transplante, processos adicionais de verificação de segurança são seguidos. A verificação do tipo sanguíneo em pontos múltiplos e definidos no processo de transplante garante a segurança e compatibilidade dos doadores e receptores de transplante. Informações vitais como tipo de órgão, ID do doador e receptor, tipo de sangue ABO do doador e receptor, data de nascimento do receptor e número do registro médico serão verificadas durante o registro do doador vivo, antes da recuperação do órgão do doador vivo, antes do recebimento do órgão na sala de cirurgia (se a cirurgia do receptor começar antes do recebimento do órgão) e após o recebimento do órgão na sala de cirurgia. A verificação precisa ser feita por dois profissionais de saúde licenciados. Se a cirurgia do receptor começar antes do recebimento do órgão na sala de cirurgia, a verificação deverá ocorrer antes da indução da anestesia ou antes da incisão. Além disso, os componentes sanguíneos são escaneados usando um sistema de verificação eletrônica intraoperatória. O THO pode exigir até 10 vezes mais unidades de sangue do que um transplante cardíaco.9 A verificação por leitura de código de barras pode ser feita por uma só pessoa e aumenta a eficiência do fluxo de trabalho, além de minimizar erros transfusionais relacionados a falhas na identificação.
EVOLUÇÃO DO PROGRAMA DE MANEJO DE SANGUE DE PACIENTES NA KECK USC
Embora as transfusões de sangue sejam vitais para alguns pacientes, elas foram identificadas como um dos cinco procedimentos mais usados pela Joint Commission’s Overuse Summit em 2012.10 O programa de manejo de sangue de pacientes e cirurgia sem transfusão foi desenvolvido inicialmente em 1997 para servir às necessidades específicas da comunidade de Testemunhas de Jeová. Nosso centro ganhou reconhecimento nacional depois que a equipe de transplantes realizou os primeiros transplantes de fígado de doador vivo sem transfusão em 1999, utilizando técnicas como hemodiluição normovolêmica aguda. De 1999 a 2004, 27 transplantes de fígado, tanto de doadores vivos quanto de doadores falecidos, foram realizados em pacientes Testemunhas de Jeová no hospital universitário da USC.11 O relativo sucesso do transplante de fígado em pacientes Testemunhas de Jeová permitiu avaliar criticamente o uso de produtos de sangue em cirurgias em geral. O que começou na USC Keck como uma iniciativa limitada, cresceu e se tornou um programa muito mais amplo que atende a pacientes que não são Testemunhas de Jeová. Essa evolução foi impulsionada pela ideia de que minimizar a administração de produtos sanguíneos aumenta a segurança do paciente e reduz o custo e o tempo de internação hospitalar. Taxas mais altas de transfusão têm sido associadas a hospitalizações mais longas, taxas mais altas de infecção, disfunção do enxerto e mortalidade.12
Considerando que a maioria das evidências que sustenta uma estratégia transfusional restritiva foi publicada na última década, a popularidade dos programas de manejo de sangue de pacientes é bastante recente. Os esforços para reduzir o uso excessivo de transfusões através de programas de manejo de sangue de pacientes em nossa instituição têm sido bem sucedidos. Atualmente, está sendo realizado um estudo retrospectivo, paralelamente à redação deste artigo. A coleta preliminar de dados informa uma diminuição de ~20% na utilização de hemácias, plaquetas e plasma para casos de transplante de fígado em 2021, em comparação com 2020, apesar de um aumento nos casos. Nossa redução nas transfusões em transplante de fígado foi o resultado de várias intervenções importantes implementadas que serão discutidas. Primeiro, foi implementada uma campanha em todo o hospital para educar e promover uma mudança cultural na prática liberal de utilização do sangue. Uma estratégia de sucesso foi adotar a campanha Choosing Wisely e perguntar “Por que dar duas unidades quando uma basta?” Para reduzir os pedidos de transfusões de múltiplas unidades de hemácias.13 Em seguida, houve um amplo esforço de comunicação nos boletins hospitalares e nos protetores de tela dos computadores do centro para incentivar transfusões de uma unidade.
Outra intervenção que mudou a prática transfusional em nossa instituição foi a implementação da tromboelastografia intraoperatória (TEG). Apesar da falta de grandes estudos clínicos randomizados, os testes viscoelásticos têm sido uma ferramenta importante para o controle hemostático em transplantes de fígado desde que Thomas Starzl, MD, realizou o primeiro transplante nos anos 60.14 Muitas instituições de transplante adotaram testes viscoelásticos, como a TEG, em sua prática médica. Entretanto, apenas recentemente a TEG passou a ser usada em nosso centro de maneira vantajosa e eficiente, tanto no intra como no pós-operatório na UTI, permitindo uma avaliação qualitativa rápida e em tempo real dos diferentes componentes da hemostasia. Por último, e talvez o mais importante, acreditamos que nosso sucesso no manejo de sangue resulta da melhor comunicação entre a equipe de anestesia hepática e a equipe cirúrgica sobre o andamento do caso. Por exemplo, a melhor comunicação e o uso da TEG nos permitiram distinguir mais claramente o sangramento cirúrgico do sangramento por coagulopatia, o que ajudou a reduzir as transfusões intraoperatórias. Em geral, esperamos demonstrar como equipes multidisciplinares podem reduzir significativamente a utilização total de produtos sanguíneos no THO.
O PAPEL DA HEMODIÁLISE (HD) INTRAOPERATÓRIA NO TRANSPLANTE DE FÍGADO
O transplante de fígado para pacientes com disfunção renal é frequentemente complicado por grandes deslocamentos de fluidos, acidose e anormalidades eletrolíticas e de coagulação que requerem grandes volumes de produtos sanguíneos e soluções cristaloides. Nos primeiros anos de THOs, os anestesiologistas de transplante hepático costumavam fazer o manejo de casos de insuficiência renal com controle rigoroso de fluidos e ajustes metabólicos contínuos sem a ajuda da hemodiálise (HD) intraoperatória. Entretanto, apesar do monitoramento vigilante da hemodinâmica e dos distúrbios metabólicos do paciente, o curso intraoperatório, em muitos casos, era complicado pelas grandes mudanças metabólicas e deslocamentos de fluidos que ocorrem em pacientes com comprometimento ou falha renal. A lógica por trás do uso da terapia de substituição renal intraoperatória durante o transplante de fígado para pacientes com insuficiência renal é que a cirurgia geralmente é complicada por grande instabilidade hemodinâmica, anormalidades de coagulação e desarranjos metabólicos. Em nosso centro, o transplante de fígado continua sendo o único caso que rotineiramente usa a HD intraoperatória no manejo anestésico.15 Nossa instituição foi uma das primeiras a demonstrar a segurança e a viabilidade da HD intraoperatória e adotar seu uso em pacientes críticos com alta pontuação MELD (média ~37) submetidos a um transplante.16
A decisão de usar a HD intraoperatória durante o THO é uma decisão colaborativa entre o cirurgião, a equipe de anestesia e o nefrologista, dependendo do grau de disfunção renal e do quadro clínico geral, incluindo a necessidade de terapia de substituição renal pós-operatória. Geralmente, a HD intraoperatória será usada em pacientes com taxa de filtração glomerular <60 ml/min ou creatinina sérica >1,4 mg/dL. Para aqueles sem acesso permanente à diálise, um cateter de HD de duplo lúmen é inserido na jugular interna, na subclávia ou na veia femoral. Antes da cirurgia, o nefrologista decide sobre a concentração de sódio, cálcio, potássio e bicarbonato na solução para diálise para cada paciente com base em seus valores laboratoriais. Durante a operação, o enfermeiro de HD trabalha em conjunto com a equipe de anestesia. Gases sanguíneos são aspirados a cada meia hora ou a cada hora para ajudar a orientar qualquer mudança necessária na solução para diálise (principalmente ajustes nos níveis de bicarbonato e potássio).17 O uso da HD intraoperatória auxilia no manejo de temperatura, acidose, hipercalemia e sobrecarga de volume, fatores associados à morbidade e mortalidade intraoperatórias em pacientes submetidos a transplante hepático.15 O anestesiologista conhece as várias opções de tratamento disponíveis (Tabela 2). Com uma avaliação completa, monitoramento e intervenções contínuas apropriadas, a HD intraoperatória pode ser usada com segurança e eficácia em pacientes críticos submetidos a transplante de fígado com alta pontuação MELD e disfunção renal.
Tabela 2: Resumo das variações de tratamento durante a HD intraoperatória
CONCLUSÃO
A realidade atual dos pacientes submetidos a transplante de fígado impõe vários desafios aos sistemas e processos para a segurança do paciente. Neste artigo, revisamos alguns dos processos implementados em nosso centro que nos permitiram melhorar as medidas de segurança e os resultados em pacientes gravemente enfermos e com alta pontuação MELD submetidos a transplante de fígado. A fim de continuar melhorando a segurança do paciente no transplante de fígado, são necessários dados e estudos mais abrangentes para caracterizar ainda mais os novos desafios de segurança no transplante de fígado.
Khoa Tran, MD, é bolsista de anestesiologia de transplante de fígado na USC – Keck School of Medicine em Los Angeles, CA.
Ashraf Sedra, MD, é chefe de anestesiologia de transplante e professor associado de anestesiologia na USC – Keck School of Medicine em Los Angeles, CA.
Joseph W. Szokol, MD, JD, MBA, é professor no Departamento de Anestesiologia, University of Southern California – Keck School of Medicine, Los Angeles, CA.
Os autores não apresentam conflitos de interesse.
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