Que papel as sociedades profissionais podem desempenhar no bem-estar dos médicos? Experiência da American Society of Anesthesiologists

Amy E. Vinson, MD, FAAP

As informações fornecidas são somente para fins educacionais relacionados à segurança e não constituem aconselhamento médico ou legal. Respostas individuais ou de grupo são somente comentários, fornecidos para fins de conhecimento ou para debate, e não constituem declarações nem opiniões da APSF. Não é intenção da APSF fornecer aconselhamento médico ou legal específico ou apoiar quaisquer pontos de vista ou recomendações em resposta às questões propostas. Em hipótese alguma a APSF será responsável, direta ou indiretamente, por qualquer dano ou perda causados por ou supostamente causados por ou em conexão com a confiança nas informações mencionadas.

Figura 1: Modelo da hierarquia das necessidades humanas de Maslow.

Figura 1: Modelo da hierarquia das necessidades humanas de Maslow.

O bem-estar médico passou a um lugar de destaque nas discussões não apenas sobre a satisfação dos profissionais de saúde, mas também sobre a sustentabilidade da indústria de cuidados de saúde. Essas discussões estão ocorrendo em todos os níveis, desde o trabalho da Action Collaborative on Clinician Well-Being and Resilience da National Academy of Medicine até sessões organizadas nas sociedades profissionais, comitês de bem-estar hospitalar e artigos na imprensa leiga e em redes sociais. O que ficou mais claro a cada conjunto de dados publicado é que as soluções baseadas em sistemas devem ser o foco para a crise atual de burnout e desengajamento dos médicos.1 Com o agravamento iminente da escassez de mão de obra prevista para os próximos anos, isso será cada vez mais importante.2 Assim, muitas organizações nacionais, incluindo sociedades profissionais, vêm colaborando há vários anos para enfrentar o desafio e responder à pergunta: Que papel as sociedades profissionais podem desempenhar no bem-estar dos médicos?

Na Conferência de Stoelting da APSF de 2021, tive a oportunidade de apresentar a experiência da American Society of Anesthesiologists (ASA) e como estamos abordando o bem-estar médico. O Committee on Physician Well-Being (COPWB) foi criado em 2019, pouco antes da pandemia da COVID-19, mas isso ocorreu após anos trabalhando com um grande número de anestesiologistas interessados em vários aspectos do bem-estar. Quando o comitê foi formado, em um esforço para manter o engajamento do maior número possível de pessoas interessadas, foram criados quatro grupos de trabalho para realizar o trabalho do comitê, divididos nos seguintes tópicos: sistemas e políticas que impactam o bem-estar; educação e esforços; saúde mental e prevenção do suicídio médico e projeção do alcance da ASA. Embora a adesão ao comitê seja apenas por inscrição, qualquer integrante da ASA pode participar dos grupos de trabalho. Também decidimos tornar a página de Internet ASA Well-being publicamente visível, pois muitos dos desafios enfrentados não são exclusivos dos médicos e o material disponibilizado pode atender a todos os membros da equipe de saúde. O COPWB também endossou um estudo de pesquisa para avaliar o estado de burnout em anestesiologistas que trabalham nos EUA, com foco em fatores demográficos e do local de trabalho potencialmente acionáveis. Este estudo de pesquisa estava programado para ser distribuído na primeira semana de março de 2020.

Recentemente, o estudo de burnout entre anestesiologistas foi publicado com quase 4.000 entrevistados.3 Usando o Maslach Burnout Inventory, que avalia o burnout ocupacional nos seus três domínios – exaustão emocional, despersonalização e baixa realização pessoal –, os autores analisaram tanto o alto risco de burnout (atingir níveis limiares de exaustão emocional ou despersonalização) quanto a síndrome de burnout (atingindo simultaneamente níveis limiares de exaustão emocional, despersonalização e baixa realização pessoal). Os achados, representando a situação antes do pico da pandemia da COVID-19 (respostas da pesquisa principalmente a partir da primeira quinzena de março de 2020), demonstraram que 59% dos anestesiologistas dos EUA estavam em alto risco de burnout e quase 14% tinham a síndrome de burnout. Embora os dados de incidência sejam importantes, as associações entre burnout e vários fatores demográficos e do local de trabalho também são informativas. Em primeiro lugar, a resposta à pergunta: “Qual o nível de apoio que você acha que recebe em sua vida profissional?” foi significativamente associada a burnout. As pessoas com pouco ou nenhum apoio em sua vida profissional tiveram uma razão de chances ajustada de 6,7 para alto risco de burnout e uma razão de chances de 10 para síndrome de burnout. Essas informações reforçaram o compromisso do COPWB de se concentrar na meta final de promover uma cultura de bem-estar e apoio em nossos locais de trabalho, conforme descrito abaixo.

Os grupos de trabalho haviam apenas começado a abordar suas respectivas pautas quando a pandemia da COVID-19 chegou com força total. Tornou-se rapidamente aparente que as experiências, os estressores e os desequilíbrios associados à pandemia eram muito heterogêneos e muitas pessoas expressaram preocupações sobre as experiências de mulheres e de outros grupos sub-representados na medicina (por exemplo, pessoas de minorias raciais e étnicas). Em resposta a isso, a ASA estabeleceu um comitê ad hoc voltado para desequilíbrios da vida sistêmica, encarregado de avaliar as cargas desiguais assumidas por muitos em nosso meio e como grupos e departamentos podem lidar com os diferentes desafios.

Quando as discussões começaram, ficou imediatamente evidente que esses desequilíbrios não apenas estavam enraizados muito antes da COVID-19, mas também representavam um desafio que apenas uma ampla mudança na cultura organizacional poderia abordar adequadamente.

Um dos primeiros produtos do trabalho do Committee on Physician Well-being foi um breve documento, intitulado “Creating a Culture of Well-being for Healthcare Workers”, que pode ser obtido no site ASA Well-being. Este documento analisa a cultura do local de trabalho abordando a necessidade de satisfazer os níveis mais altos da hierarquia das necessidades de Maslow (Figura 1), começando com nossas necessidades de sobrevivência mais básicas e passando às necessidades de nível superior ligadas a um senso de significado e propósito. A abordagem é estruturada não pelo lema desatualizado e tradicional de “comando e controle” da liderança organizacional, mas pela comunicação bidirecional robusta e aberta, livre do medo de represálias e reforçada pela responsabilidade, assim como pela comunicação aprimorada da liderança. Uma cultura do local de trabalho nessa linha promoveria a colaboração entre todas as partes interessadas dentro da organização, formando equipes mais sólidas e inclusivas.

Este breve documento serviu como um ponto de partida racional para abordar a diversidade das necessidades dentro da força de trabalho da anestesia. A declaração conjunta do comitê ad hoc para desequilíbrios da vida sistêmica e do Committee on Physician Well-being, “ASA Statement on Creating a Culture of Well-being for Healthcare Workers”, foi proposta e aprovada como resolução pelo Conselho de Representantes da ASA no Congresso da ASA em outubro de 2021. Essa declaração defende uma abordagem de cinco pontos para transformar a cultura de trabalho, sendo fundamentada por quatro documentos de fontes confiáveis que fornecem detalhes mais granulares e pragmáticos às recomendações.

A abordagem de uma vida profissional e doméstica equilibrada é relativamente intuitiva, mas também considera interrupções específicas da pandemia em várias trajetórias de carreira. Muitos desses pontos podem parecer particularmente desanimadores devido à atual escassez de pessoal, mas mesmo assim são metas recomendadas ao longo da reconstrução. As recomendações são listadas a seguir (em itálico quando alteradas para incluir todos os profissionais de saúde) e estão disponíveis em https://www.asahq.org/standards-and-guidelines/asa-statement-on-creating-a-culture-of-well-being-for-health-care-workers:

Recomendações para uma cultura de bem-estar

Nossa intenção é que essas recomendações sejam uma estrutura para melhorias no local de trabalho, levando a uma melhor cultura de apoio para toda a força de trabalho. Os desafios enfrentados pelos anestesiologistas não são exclusivos deles, e incentivamos todas as sociedades profissionais a desenvolverem e adotarem estratégias semelhantes, caso ainda não o tenham feito. Colaborações entre sociedades profissionais, que representam perspectivas variadas, podem apenas fortalecer nossa resposta coletiva às necessidades dos profissionais de saúde.

Dizer que a pandemia da COVID-19 mudou a maneira como pensamos sobre muitos aspectos da vida seria um eufemismo. Muitas das coisas que achávamos ter que fazer de uma certa maneira foram simplesmente feitas de outra maneira por mais de um ano. Embora isso tenha sido desestabilizador, também desenvolveu uma mentalidade criativa. Juntamente com uma ampla abertura para discutir aspectos da integração de vida pessoal e profissional, da saúde mental e do bem-estar, essa mentalidade criativa é uma oportunidade de chegar a uma transformação da cultura de trabalho que não se imaginava ser possível. Em poucas palavras, as rachaduras foram expostas. Podemos optar por cobri-las novamente e ignorar as falhas em nosso sistema ou podemos trabalhar para consertá-las e reconstruir uma estrutura ainda mais sólida do que pensávamos.

 

Amy E. Vinson, MD, FAAP, é professora assistente de Anestesia, Harvard Medical School, associada sênior em Anestesiologia Perioperatória, Boston Children’s Hospital, diretora de Bem-Estar Clínico, Departamento de Anestesiologia, Medicina Intensiva e Medicina da Dor, e presidente do Committee on Physician Well-Being, American Society of Anesthesiologists.


O autor não apresenta conflitos de interesse.


Referências

  1. National Academy of Medicine, National Academies of Sciences, Engineering and Medicine. Taking action against clinician burnout: a systems approach to professional well-being. The National Academies Press; 2019. doi.org/10.17226/25521
  2. Oslock WM, Satiani B, Way DP, et al. A contemporary reassessment of the US surgical workforce through 2050 predicts continued shortages and increased productivity demands. Am J Surg. 2021;223:28–35. Published online 2021. doi.org/10.1016/j.amjsurg.2021.07.033
  3. Afonso AM, Cadwell JB, Staffa SJ, Zurakowski D, Vinson AE. Burnout rate and risk factors among anesthesiologists in the United States. Anesthesiology. 2021;134:683–696. doi.org/10.1097/aln.0000000000003722