Lesão térmica após o uso de um sistema de aquecimento convectivo

Luke S. Janik, MD; Ryan Lewandowski, SRNA
Summary: 

Apresentamos dois casos de lesões térmicas decorrentes do uso de um sistema de aquecimento convectivo. Em nenhum dos casos, os alarmes sonoro e visual de superaquecimento foram ativados. Em um dos casos, a tubulação de ar estava acidentalmente ausente. Pedimos ao fabricante, Smiths Medical, que opine sobre esses casos e ofereça sugestões aos anestesiologistas sobre o uso seguro de dispositivos de aquecimento por convecção. Além disso, destacamos os desafios clínicos associados a algumas das recomendações no Manual do Operador.

Caros editores da Resposta rápida:

Dois pacientes consecutivos sofreram lesões térmicas semelhantes nos membros superiores e no tórax após o uso de um sistema de aquecimento convectivo. Ambos os pacientes foram submetidos a uma prostatectomia laparoscópica robótica na posição de Trendelenberg com os braços dobrados. Os casos foram realizados sequencialmente na mesma sala de cirurgia, com o mesmo pessoal. Em ambos os casos, um sistema de aquecimento convectivo Smiths Medical EQUATOR® Level 1® foi usado em conjunto com a manta térmica convectiva para a parte superior do corpo Snuggle Warm®. A manta térmica convectiva para a parte superior do corpo foi afixada ao paciente com a fita adesiva embutida, colocada abaixo da linha do mamilo. Nenhuma manta adicional foi colocada em cima (ou embaixo) da manta térmica. Os “braços” da manta térmica foram encaixados na folga entre a mesa cirúrgica e os coxins, já que os braços do paciente estavam dobrados. Em seguida, a mangueira foi conectada à manta térmica na abertura de conexão da manta, próximo ao ombro esquerdo, e a mangueira foi suspensa com um clipe de retenção (Figura 1). Vale ressaltar que, em um dos casos, foi confirmado que, acidentalmente, a tubulação de ar não estava presente. A tubulação de ar é um tubo plástico em forma de “cotovelo” conectado à extremidade da mangueira de aquecimento, com várias aberturas na extremidade distal projetadas para dispersar uniformemente ar quente sobre o paciente (Figura 2, Painel A). O dispositivo térmico foi ajustado à temperatura de 44 °C (configuração alta) em ambos os casos. No intraoperatório, o dispositivo térmico pareceu funcionar normalmente, sem alarmes sonoros ou visuais. Ambos os pacientes permaneceram hemodinamicamente estáveis e normotérmicos de acordo com monitorização da temperatura nasofaríngea durante todo o período. Na recuperação, ambos os pacientes apresentaram eritema difuso na extremidade superior esquerda e no tórax, bastante próximo ao local da abertura de conexão da manta. No primeiro dia de pós-operatório, surgiram bolhas no ombro e tórax de ambos os pacientes (Figura 3), que acabaram se resolvendo com tratamento conservador.

Figura 1: O painel A mostra a configuração do dispositivo de aquecimento nesses casos, com a mangueira de aquecimento conectada à abertura de conexão próxima ao ombro esquerdo da manta térmica para a parte superior do corpo. A mangueira de aquecimento é suspensa com um clipe de retenção. As setas laranja do painel B destacam os “braços” da manta térmica encaixados na folga entre a mesa cirúrgica e a abertura de conexão próxima ao ombro esquerdo do paciente.

Figura 1: O painel A mostra a configuração do dispositivo de aquecimento nesses casos, com a mangueira de aquecimento conectada à abertura de conexão próxima ao ombro esquerdo da manta térmica para a parte superior do corpo. A mangueira de aquecimento é suspensa com um clipe de retenção. As setas laranja do painel B destacam os “braços” da manta térmica encaixados na folga entre a mesa cirúrgica e a abertura de conexão próxima ao ombro esquerdo do paciente.

Figura 2: O painel A mostra a extremidade da mangueira desacoplada da tubulação de ar. Observe as perfurações na extremidade distal da tubulação de ar, que distribuem o fluxo de ar por toda a manta térmica. O painel B mostra a conexão correta da extremidade da mangueira à tubulação de ar que, por sua vez, se conecta à abertura da manta. O painel C mostra como a extremidade da mangueira pode ser (inadvertidamente) inserida diretamente na abertura da manta se a tubulação de ar estiver ausente.

Figura 2: O painel A mostra a extremidade da mangueira desacoplada da tubulação de ar. Observe as perfurações na extremidade distal da tubulação de ar, que distribuem o fluxo de ar por toda a manta térmica. O painel B mostra a conexão correta da extremidade da mangueira à tubulação de ar que, por sua vez, se conecta à abertura da manta. O painel C mostra como a extremidade da mangueira pode ser (inadvertidamente) inserida diretamente na abertura da manta se a tubulação de ar estiver ausente.

Discussão

Figura 3: Bolhas observadas no primeiro dia pós-operatório (consentimento do paciente obtido para uso desta imagem).

Figura 3: Bolhas observadas no primeiro dia pós-operatório (consentimento do paciente obtido para uso desta imagem).

Os sistemas de aquecimento convectivo são comumente usados para prevenir hipotermia.1,2 A hipotermia tem sido associada ao aumento de infecções do sítio cirúrgico, perda de sangue e eventos cardíacos. Os Centers of Medicare & Medicaid Services recentemente adicionaram o manejo de temperatura perioperatória como uma medida central de anestesia, exigindo temperaturas pós-operatórias > 35,5 °C para procedimentos acima de 60 minutos.

As lesões térmicas são raras quando as instruções do fabricante são seguidas3 e, quando ocorrem, geralmente resultam do uso inadequado do dispositivo.4-6 A forma mais comum de uso indevido ocorre quando a mangueira é posicionada sobre a pele do paciente ou na proximidade, sem o uso da manta térmica. O sistema de aquecimento convectivo Smiths Medical EQUATOR® Level 1® está equipado com vários recursos de segurança para reduzir o risco de lesão térmica, incluindo alarmes de superaquecimento, além de indicadores de manutenção e de oclusão.

Nos casos aqui apresentados, a causa da lesão térmica permanece sob investigação. O padrão de lesão sugere uma área focal de superaquecimento no ponto em que a mangueira se conecta à manta térmica. Acreditamos que talvez houvesse um defeito no alarme de superaquecimento. De acordo com o Manual do Operador, “o termistor de segurança será ativado e será disparado um alarme se a temperatura atingir 3 °C acima do ponto configurado… o circuito fornece um meio independente de desligamento, que interrompe a alimentação do aquecedor e do ventilador”. Embora muitos fatores contribuam para o desenvolvimento de uma lesão térmica (temperatura, duração da exposição etc.), uma possível explicação nesses casos pode ser que a temperatura do ar tenha sido superior ao ponto de alarme de 47 °C. Outro possível fator contribuinte é a ausência acidental da tubulação de suprimento de ar (confirmada em um dos casos). De acordo com o Manual do Operador, a tubulação de ar “distribui o ar aquecido para os canais de fornecimento em um padrão projetado para promover a transferência de calor para o paciente… perfurações no canal de fornecimento de ar no lado do paciente dispersam suavemente o ar quente sobre o paciente, mantendo assim sua temperatura”. A ausência da tubulação de ar provavelmente resultou no fornecimento concentrado de ar aquecido em uma pequena área de superfície do paciente, explicando o padrão de lesão. Como dois dispositivos idênticos estavam presentes naquela sala de cirurgia no dia da lesão, ambos os dispositivos foram devolvidos à Smiths Medical para investigação adicional (embora suspeitemos que o mesmo dispositivo tenha levado ao problema em ambos os casos). A investigação está em andamento.

Esses casos oferecem uma oportunidade para abrir um diálogo com a Smiths Medical em um esforço para melhorar a segurança do paciente. Primeiramente, gostaríamos que a Smiths Medical comentasse sobre a importância da tubulação de ar. A Figura 2 demonstra como a mangueira e a tubulação de ar podem ser desmontadas e como é possível conectar a mangueira diretamente à manta térmica, sem usar a tubulação de ar. Se a tubulação de ar é uma peça fundamental para o funcionamento seguro do dispositivo, por que ela é removível? Se a tubulação precisar ser removível, a extremidade da mangueira não deveria portar uma etiqueta de advertência circular visível para alertar o usuário sobre o perigo potencial de conectá-la diretamente à abertura na manta (Figura 2, Painel C)? Ou, como alternativa, o fabricante considerou usar uma “função de restrição” que impedisse a mangueira de se conectar à abertura da manta sem o uso da tubulação de ar (ou seja, de maneira semelhante a que uma bomba de combustível diesel não pode ser inserida em um tanque de combustível comum)?

Em seguida, gostaríamos que a Smiths Medical respondesse a várias perguntas sobre o Manual do Operador do aquecedor convectivo EQUATOR® Level 1®, que contém uma extensa lista de advertências destinadas a evitar lesões ao paciente. Muitos desses alertas são intuitivos e fazem parte da rotina de cuidados, mas alguns deles são difíceis de conciliar com a realidade do atendimento clínico, conforme discutido a seguir:

“Para evitar lesões térmicas, não use a configuração de temperatura mais alta ao tratar pacientes com sensibilidade diminuída, sem sensibilidade ou com perfusão ruim.”

Por definição, pacientes sob anestesia geral não apresentam sensibilidade, mas precisam de aquecimento ativo para evitar hipotermia. O fabricante sugere que a configuração de temperatura mais alta seja totalmente evitada em pacientes sob anestesia geral?

“Sempre inicie o tratamento na configuração de temperatura não ambiente mais baixa para evitar lesões térmicas. Aumente a configuração de temperatura, se necessário, usando a temperatura corporal central e a resposta cutânea usando como indicador a pele em contato com a manta térmica convectiva.”

O aquecedor de convecção geralmente é iniciado na configuração mais alta para evitar a perda rápida de calor por radiação, condução, convecção e evaporação. O fabricante desaconselha essa prática? Em caso afirmativo, há alguma exceção em que se justifique iniciar na configuração alta (por exemplo, um paciente traumatizado com grande exposição cirúrgica em risco de hipotermia significativa e coagulopatia associada)? Existe um tempo mínimo necessário em cada configuração antes de aumentar para a próxima?

“… Observe a resposta cutânea em intervalos regulares para evitar lesões térmicas. Se houver eritema ou instabilidade dos sinais vitais, diminua a configuração de temperatura ou interrompa o uso do tratamento de aquecimento convectivo.”

Reconhecer uma lesão térmica em desenvolvimento pode ser difícil ou impossível até mesmo para o anestesiologista mais vigilante, porque os sinais clínicos podem só aparecer muito depois da ocorrência da lesão. Além disso, o local é muitas vezes inacessível ou está coberto pela própria manta térmica ou por campos cirúrgicos. Um fator adicional é que a iluminação em uma sala de cirurgia pode ser reduzida, dificultando a detecção de eritema sutil.

A sugestão do fabricante de que a instabilidade nos sinais vitais justifica a descontinuação da terapia de aquecimento parece não considerar as complexas perturbações fisiológicas durante a anestesia e a cirurgia. O diagnóstico diferencial de instabilidade dos sinais vitais no intraoperatório é amplo e a interrupção do tratamento de aquecimento pode ser contraindicada em determinadas situações (por exemplo, um paciente que está hipotenso devido a choque hemorrágico, no qual a coagulopatia pode ser agravada pela hipotermia).

“Para evitar lesões térmicas, não permita que nenhuma parte do corpo do paciente encoste na entrada da mangueira ativa”

O design da manta Snuggle Warm® coloca a entrada da mangueira ativa próxima ao ombro do paciente. O fabricante considerou modificar o design da manta térmica, de modo que a abertura de conexão fique mais distante do paciente (ou seja, criar uma extensão do tipo “tromba de elefante”)? Quando os braços do paciente estão posicionados ao lado do corpo, é prática comum dobrar as bordas da manta térmica da parte superior do corpo e encaixá-las na folga entre a mesa cirúrgica e os coxins. Essa prática restringe o fluxo de ar e aumenta o risco de lesão térmica? Em caso afirmativo, quais recomendações o fabricante tem para o uso da manta na parte superior do corpo em um paciente com os braços dobrados?

Nosso departamento tomou medidas generalizadas para aumentar a conscientização sobre essas preocupações de segurança e emitiu as seguintes recomendações aos membros da equipe de anestesia:

  • Sempre confirme a presença da tubulação de ar antes de conectar a mangueira à manta térmica.
  • Comece com a configuração de temperatura média (40 °C), salvo indicação em contrário.
  • Tenha cuidado para evitar a restrição do fluxo de ar dentro da manta térmica.

Convidamos a Smiths Medical a responder a este relato e agradecemos quaisquer sugestões que apresentem sobre o uso seguro de sistemas de aquecimento convectivo.

Atenciosamente,

Luke S. Janik, MD

Ryan Lewandowski, SRNA


Artigo de resposta: Sistemas de aquecimento convectivo – Manutenção da normotermia na sala de cirurgia

Artigo de resposta: Aquecedores por convecção e queimaduras – um perigo ainda claro e atual


 

Luke S. Janik, MD, é professor assistente do Departamento de Anestesia e Medicina Intensiva da University of Chicago e anestesista assistente do Departamento de Anestesiologia, Medicina Intensiva e Medicina da Dor da NorthShore University HealthSystem em Evanston, Illinois, EUA.

Ryan Lewandowski, SRNA, é atualmente estudante de enfermagem com ênfase em anestesia na NorthShore University HealthSystem School of Nurse Anesthesia em Evanston, Illinois, EUA.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

  1. Ohki K, Kawano R, Yoshida M, et al. Normothermia is best achieved by warming above and below with pre-warming adjunct: a comparison of conductive fabric versus forced-air and water. Surg Technol Int. 2019;34:40–45.
  2. Nieh HC, Su SF. Meta-analysis: effectiveness of forced-air warming for prevention of perioperative hypothermia in surgical patients. J Adv Nurs. 2016;72:2294–2314.
  3. Bräuer A, Quintel M. Forced-air warming: technology, physical background and practical aspects. Curr Opin Anaesthesiol. 2009;22:769–774.
  4. Chung K, Lee S, Oh SC, et al. Thermal burn injury associated with a forced-air warming device. Korean J Anesthesiol. 2012;62:391–392.
  5. Uzun G, Mutluoglu M, Evinc R, et al. Severe burn injury associated with misuse of forced-air warming device. J Anesth. 2010;24:980–981.
  6. Truell KD, Bakerman PR, Teodori MF, Maze A. Third-degree burns due to intraoperative use of a Bair Hugger warming device. Ann Thorac Surg. 2000;69:1933–1934.

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