Passado e presente
A anestesia oftálmica data de 1884, quando o oftalmologista Karl Koller1 introduziu o uso de cocaína como anestésico local para cirurgia oftálmica. O bloqueio retrobulbar foi descrito pela primeira vez por Herman Knapp em 1884. Mais tarde, em 1936,2 Atkinson descreveu uma técnica retrobulbar que foi adotada muito rapidamente. No entanto, devido à alta incidência de complicações, a técnica foi abandonada com o tempo.3 Atualmente, na Massachusetts Eye and Ear Infirmary (MEEI), Boston, MA, EUA, oferecemos serviços de anestesia sob anestesia local, regional e geral para mais de 16 mil procedimentos oftálmicos por ano em pacientes adultos e pediátricos.
Anestesia oftálmica segura
Os princípios básicos para o cuidado seguro da anestesia durante procedimentos oculares eletivos são oferecer máximo alívio da dor, facilidade no procedimento cirúrgico, recuperação rápida e riscos mínimos associados à cirurgia e anestesia.4,5 Nos últimos 30 anos, o avanço das técnicas cirúrgicas permitiu um atendimento rápido, eficaz e seguro do paciente.
A maioria dos procedimentos oftálmicos atuais pode ser realizada em centros de cirurgia ambulatorial (CCAs) e em ambiente cirúrgico baseado em consultório. Um componente importante para esse sucesso é a seleção do paciente, procedimento e local apropriados, todos determinados por critérios clínicos e demanda de equipamentos. No MEEI, prestamos atendimento clínico no nosso campus principal do hospital, onde temos serviços hospitalares e ambulatoriais, e no nosso CCA autônomo. Essa organização permite flexibilidade no agendamento de casos, a fim de melhorar a eficiência em ambos os locais.
Farmacologia
Com o passar dos anos, nossa prática médica evoluiu para atender à demanda por anestesia mais rápida, segura e eficiente. O uso de anestésicos locais de ação curta e longa tem sido essencial para alcançar esses objetivos. O objetivo da sedação é diminuir a ansiedade, maximizando a segurança. Combinado com o uso de anestesia regional, várias opções de sedação e medicamentos combinados de analgésicos foram introduzidos na prática médica nos últimos 25 anos, como remifentanil, dexmetomidina e midazolam (ver Tabela 1). Esses sedativos de curta duração podem ser administrados imediatamente antes do bloqueio regional para reduzir ou eliminar a dor da inserção da agulha e da injeção do anestésico local.5 A sedação prolongada é usada com cautela em pacientes selecionados e, em geral, é preferencialmente evitada, pois é necessário que o paciente esteja acordado para a cirurgia. Algumas clínicas usam pequenas doses de propofol até que o paciente perca a consciência enquanto o bloqueio é realizado.
Tabela 1: Potenciais medicações* usadas para sedação durante procedimentos oftálmicos
Sempre fornecemos oxigênio suplementar ao realizar um bloqueio ocular e durante a intervenção cirúrgica. No MEEI, usamos uma cânula nasal com fluxos de no máximo 5 l/min ou uma máscara tenda. A máscara tenda fica na altura do queixo do paciente. Fornece oxigenação ao mesmo tempo que evita que a cobertura repouse na parte inferior da face do paciente (ajudando com a sensação de claustrofobia em alguns casos). Uma observação importante é que há um pequeno risco de acúmulo de CO2 sob a cobertura. Para procedimentos curtos, o risco é mínimo; entretanto, para procedimentos com mais de uma hora, recomendamos o uso de aspiração de CO2.
Para bloqueios oculares, geralmente usamos uma combinação de lidocaína, bupivacaína e a enzima hialuronidase. A combinação de lidocaína 1,5% e bupivacaína 0,375% proporciona bloqueio com início rápido (entre 5-10 minutos) e duração de cerca de 2 horas, o que é suficiente para a maioria dos procedimentos. A lidocaína não deve ser usada em concentrações superiores a 2% devido ao risco de miosite se injetada por erro em um dos músculos extraoculares. A duração e o início podem estar relacionados ao volume injetado, embora isso seja controverso. A enzima hialuronidase como agente auxiliar geralmente é usada com anestésicos locais.5 As concentrações entre 1 e 7,5 unidades/ml são as mais comumente usadas, mas concentrações de até 0,75 unidades/ml podem ser eficazes.6 A adição de hialuronidase é usada para aumentar a permeabilidade tecidual do anestésico local, promover a dispersão do anestésico local, reduzir o aumento da pressão orbital associada ao volume injetado, melhorar a qualidade do bloqueio e reduzir o risco de lesão nos músculos extraoculares se o anestésico local for injetado neles.5
Pacientes
A comunicação adequada com o paciente, o cirurgião e os anestesiologistas é essencial. Os pacientes devem ser avisados e compreender que devem ficar deitados (ou semideitados devido a comorbidades), permanecer imóveis, cooperar fornecendo uma comunicação clara e expressar qualquer preocupação com relação à claustrofobia ou ataques de pânico conforme necessário. Também é necessário o histórico clínico específico, incluindo o uso de qualquer terapia anticoagulante ou antitrombótica, cirurgias oculares anteriores e adequação geral para cirurgia no mesmo dia. O exame físico deve se concentrar na avaliação das vias aéreas, detecção de anormalidades relevantes, incluindo qualquer doença que possa comprometer a capacidade de se deitar confortavelmente em decúbito dorsal, como deformidades ou dores nas costas, insuficiência cardíaca congestiva grave, doença pulmonar obstrutiva crônica ou claustrofobia. Essas doenças são mais relevantes quando a anestesia tópica ou regional é planejada em associação com sedação.
Controvérsias:
NPO
Embora controverso, ainda recomendamos que nossos pacientes sigam as diretrizes padrão de jejum (NPO) da ASA para reduzir o risco de aspiração caso haja necessidade de conversão para anestesia geral.
Anticoagulação:
Recomendamos que os pacientes com alto risco de coagulação e complicações embólicas (devido a patologias cardíacas ou vasculares) continuem a tomar as doses terapêuticas de aspirina ou varfarina durante todo o período perioperatório. Publicações recentes não mostraram maior incidência de complicações de sangramento que ameacem a visão após a anestesia regional em pacientes que tomam aspirina, varfarina ou clopidogrel antes da cirurgia de catarata, em comparação com pacientes que não tomam esses medicamentos.7 Da mesma forma, literatura recente foi publicada a respeito das preocupações com o aumento do risco de sangramento em pacientes que tomam anticoagulantes orais mais novos, como apixabana, rivaroxabana e dabigatrana. No MEEI, em Boston, nosso recente estudo retrospectivo sobre a continuação desses medicamentos também não resultou em uma maior incidência de complicações de sangramento em pacientes que se apresentaram para cirurgia ocular eletiva e receberam anestesia regional como técnica primária.8
Injeção de gás:
A injeção de gás é usada principalmente durante a cirurgia de retina. Se a anestesia geral for administrada, os pacientes não devem receber óxido nitroso quando o gás for injetado no olho (por exemplo, SF6 ou C3F8) ou quando o gás for administrado anteriormente para criar uma “bolha” para tamponar internamente a retina descolada, a menos que um oftalmologista documente que a bolha foi completamente absorvida. Embora o SF6 geralmente seja completamente absorvido em 10 dias e o C3F8 em seis semanas, há relatos de casos de cegueira devido ao uso de óxido nitroso após 25 dias para SF6 e após 41 dias para C3F8.9 Pacientes que receberam um desses gases devem ser identificados. No MEEI, colocamos uma pulseira que inclui o nome do gás injetado, a data e a hora, a fim de alertar os profissionais de saúde em caso de uma potencial emergência.
Procedimentos
Os procedimentos mais comuns realizados em nosso CCA são cirurgias de catarata, glaucoma, retina, oculoplástica e estrabismo. Em nosso campus principal, incluímos trauma ocular, exames pediátricos sob anestesia, transplante de células límbicas, injeções de terapia gênica no olho e transplantes de córnea complexos. Para os procedimentos cirúrgicos oftálmicos mais comuns realizados em nossa instituição, o anestesiologista realiza bloqueios extraconais. Outros bloqueios, como os bloqueios intraconais, tópicos, subtenonianos (episclerais) e injeções intracameral de anestésico local sem preservativo, são realizados pelo cirurgião.18 As considerações sobre a anestesia para pacientes com claustrofobia ou que não cooperam estão apresentadas na Tabela 2.
Tabela 2: Considerações de anestesia para procedimentos oculares comuns para pacientes claustrofóbicos e/ou não cooperativos
A anestesia geral é mais comumente fornecida a pacientes com histórico de claustrofobia, pacientes que não conseguem ficar deitados durante a cirurgia, pacientes pediátricos e pacientes que se apresentam para intervenções complexas que podem levar mais de duas horas.
Treinamento
A cirurgia de catarata é uma das cirurgias ambulatoriais mais comuns realizadas em CCAs, e o risco de complicações relacionadas a bloqueios oculares, bem como uma cirurgia do lado errado, está sempre presente. Embora incomuns nas mãos de anestesiologistas qualificados e bem treinados, essas complicações podem ter efeitos devastadores na vida de qualquer paciente. Portanto sugerimos que o treinamento adequado em anestesia para cirurgia oftálmica é essencial e deve ser incluído em todos os programas de residência.
As técnicas de anestesia ocular regional são seguras quando realizadas por profissionais experientes ou sob a supervisão de alguém devidamente treinado. Atualmente, há uma falta de treinamento em residência de anestesia e programas de bolsas de estudo para anestesia regional no que diz respeito às técnicas de anestesia regional para procedimentos oftálmicos. No MEEI, instituímos um rodízio de anestesia regional para residentes e bolsistas de anestesia regional. Os bolsistas de anestesia regional passam duas semanas aprendendo como fazer bloqueios oculares. Ao mesmo tempo, aprendem como lidar com nosso alto fluxo de trabalho com pacientes, enquanto mantêm a segurança e a eficiência. Os anestesiologistas devem ser muito bem versados tanto na realização da anestesia quanto no manejo do paciente para cirurgias oculares.
Complicações
Como em qualquer outra intervenção, podem ocorrer complicações durante a realização de bloqueios oculares. A Tabela 3 descreve as complicações do procedimento ocular e as estratégias de tratamento associadas.
Tabela 3: Complicações do procedimento ocular e estratégias de manejo9
Considerações especiais durante a pandemia de COVID-19
A pandemia de COVID-19 afetou a maneira como fornecemos anestesia para nossa população oftálmica, assim como para outras especialidades. Em nossa instituição, o teste PCR é obrigatório para qualquer paciente que necessite de anestesia geral e é opcional para qualquer paciente sedado, pois há uma necessidade potencial de ventilação por máscara (um procedimento gerador de aerossol [PGA]) se ocorrer sedação excessiva. É crucial garantir que os pacientes submetidos a procedimentos realizados em consultório tenham um quadro estável, não apresentem sintomas de COVID-19, não tenham tido contato próximo com um paciente de COVID-19 confirmado (ou seja, menos de 1,8 metro de distância com pelo menos 15 minutos de exposição) e apresentem teste negativo para COVID-19 em até 72 horas após o procedimento.19 Na Figura 1, Young et al. sugerem um algoritmo de teste e triagem para o ambiente de consultório.
Figura 1: Algoritmo de teste e triagem de COVID-19
Recomendações na era da COVID-19
Outro desafio é decidir a quantidade de EPI a ser usada, visto que o número de casos de COVID-19 está em constante evolução, com algumas áreas apresentando mais casos do que outras. Existem dois algoritmos para abordar áreas de baixa e alta prevalência de casos de COVID-19 (menor e maior que 4 casos por 100.000 habitantes, respectivamente) (ver Figura 2).
Figura 2: Algoritmos de equipamento de proteção individual (EPI) para COVID-19 para áreas de baixa prevalência versus alta prevalência de COVID-19
Deve haver uma conversa entre o cirurgião e o anestesiologista quando a conversão de um caso de cuidados anestésicos monitorizados para uma anestesia geral for necessária e o teste de COVID-19 for limitado ou estiver indisponível. Recomendamos reagendar o caso e solicitar um teste PCR para COVID-19 em até 72 horas da data da cirurgia para qualquer caso eletivo que requeira a transição da sedação para a anestesia geral.20 Existem circunstâncias ocasionais, em que um paciente pode ficar agitado ou desenvolver um ataque de pânico durante a cirurgia e a conversão da sedação para anestesia geral se faz necessária, sendo necessário o uso de EPI completo.19 Conforme observado, esses eventos são muito raros em nossa prática médica.
A pandemia de COVID-19 mudou muitos aspectos de nossas vidas, incluindo muitas mudanças em nossas práticas médicas destinadas a reduzir ou minimizar o risco de transmissão do vírus SARS-CoV-2 na comunidade e em hospitais. Parte da identificação desse risco é reconhecer quais procedimentos produzem partículas em aerossol e quais, conforme visto pelos algoritmos abaixo, resultam em modificações no uso de EPI para o procedimento que está sendo executado.
Vários estudos examinaram se procedimentos oftalmológicos de fato resultam na aerossolizaçãoção de partículas. Um estudo de 30 procedimentos de facoemulsificação não detectou aerossolização intraoperatória em nenhum dos casos, independentemente da técnica.20 Noureddin et al. usaram um monitor de aerossol sofisticado para detectar aerossolização em cirurgias de catarata de facoemulsificação em suínos. Eles também concluíram que não era um procedimento médico gerador de aerossol.21
Os resultados desses estudos indicam que os oftalmologistas podem realizar essas cirurgias com segurança ao aderir às precauções tradicionais de gotículas durante a pandemia de COVID-19.
Em consideração aos dados relativos a esses procedimentos não geradores de aerossol, os algoritmos terão de ser devidamente ajustados e o tipo de anestesia também precisará ser reconsiderado. Embora um procedimento de facoemulsificação possa não gerar partículas de aerossol, a intubação endotraqueal para anestesia geral pode resultar em potencial aerossolização. Até que os Centers for Disease Control (CDC) atualizem suas políticas com novas recomendações, os algoritmos atuais devem ser mantidos.
Agora estamos descobrindo que a infecção aguda de COVID-19 não é o fim do caminho. Os critérios de seleção de pacientes devem incluir a determinação do status de COVID, o status de vacinação e infecção anterior com comorbidades de longa duração. O reconhecido status de longa duração da COVID-19 pode incluir fadiga persistente, tontura, falta de ar, dor no peito, dores musculares e/ou articulares, perda de olfato ou paladar, depressão ou ansiedade, problemas de memória ou concentração, coágulos sanguíneos e problemas vasculares, e até mesmo danos prolongados aos órgãos como coração, pulmões ou cérebro.22
Nossa visão do futuro
À medida que novas técnicas continuam a evoluir, reconhecemos que a tendência de realização de procedimentos oftálmicos eletivos em ambiente ambulatorial continuará a crescer. De acordo com isso, consideramos que haverá um aumento contínuo em uma população de pacientes idosos e mais doentes que precisarão de intervenções oftalmológicas eletivas. Por exemplo, recentemente encontramos pacientes que se apresentaram ao centro cirúrgico com dispositivos de assistência ventricular esquerda (DAVE) para cirurgia ocular eletiva. Para manter um ambiente seguro e apropriado, recomendamos o desenvolvimento de políticas contínuas que apoiem a seleção apropriada de pacientes, procedimento e local. Nos últimos cinco anos, houve relatos alegando que complicações relacionadas aos bloqueios oculares ocorreram devido ao uso de técnicas ou configurações incorretas. Portanto acreditamos firmemente que é prudente implementar um programa de educação formal que inclua habilidades clínicas e técnicas, comunicação interpessoal e interprofissional, manejo de prática, políticas, treinamento de simulação, normas, diretrizes e regulamentos. No MEEI, tivemos sucesso na implementação desse currículo educacional e criamos o Manual do MEEI oficial para procedimentos oftálmicos para acompanhar o currículo como um recurso “de bolso”. Para compartilhar nosso programa globalmente, junto com o lançamento do Manual do MEEI em 2022, prevemos a disponibilização de oportunidades de Educação médica continuada (EMC) do MEEI/HMS ao vivo e virtuais.
Andres Macias, MD, FASA, é chefe de anestesia, professor assistente da Harvard Medical School, Massachusetts Eye and Ear Infirmary, Boston, MA, EUA.
Fred E. Shapiro, DO, FASA, é professor associado de anestesia da Harvard Medical School, Massachusetts Eye and Ear Infirmary, Boston, MA, EUA.
Os autores não apresentam conflitos de interesse.
Referências
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