Pediram-me para escrever um artigo sobre a síndrome da segunda vítima (SSV), pois foi sugerido que eu pudesse ser uma especialista na área. Permitam-me afirmar desde já: não me autoproclamarei um especialista na área de SSV. Posso dizer que sou anestesista há mais de 20 anos e, durante esse tempo, tenho certeza de que vivenciei a SSV em várias ocasiões. Além disso, em 1º de outubro de 2017, fui chamada para atender o plantão de uma sala de cirurgia tratando mais de 200 vítimas do evento Las Vegas Mass Casualty 1, que foram encaminhadas ao nosso centro de trauma da Emergência durante várias horas. Ao processar essa experiência e compartilhar as lições que aprendi com ela, compreendi que muitos eventos adversos relacionados ao paciente não acabam quando o evento termina. É aí que reside minha introdução acadêmica à SSV. As várias palestras que meu marido (Nicholas Fiore Jr., MD, um cirurgião pediátrico) e eu demos sobre nossa experiência ficaram incompletas sem uma discussão sobre SSV. A marca que esse evento deixou em mim é indelével e, cada vez que conto minha história, a ansiedade que ela produz dá lugar a uma sensação de cura após uma luta emocional e psicológica.
O termo síndrome da segunda vítima foi cunhado por Albert Wu em 2000 e aprimorado por Scott et al. em 20092 para descrever o estado de espírito de um profissional de saúde cujo paciente teve um evento adverso imprevisto, erro médico ou lesão relacionada com o tratamento sendo a “primeira vítima”. As segundas vítimas são os profissionais de saúde que estão envolvidos em um evento adverso inesperado do paciente, em um erro médico e/ou uma lesão relacionada ao paciente e estão traumatizados pelo evento. Frequentemente, esses indivíduos se sentem pessoalmente responsáveis pelo desfecho do paciente. Muitos sentem que falharam com seus pacientes e começam a questionar suas habilidades clínicas e sua base de conhecimento. O termo SSV se tornou internacionalmente reconhecido por profissionais e gestores de cuidados de saúde, bem como por formuladores de políticas, porque é fácil de lembrar e invoca um senso de urgência. Simplificando, o trauma psicológico que se segue a um evento estressante, muitas vezes com desfechos negativos, cria uma segunda vítima, o profissional de saúde. Estudos têm mostrado que quase 80% dos profissionais de saúde vivenciam e são psicologicamente impactados por um evento adverso significativo pelo menos uma vez em suas carreiras.3 Estima-se que os incidentes de segurança do paciente (ISPs) ocorram com um em cada sete pacientes hospitalizados.4 Falhas de sistema que ocorrem antes mesmo de um profissional de saúde entrar em cena podem levar a erros médicos e resultados imprevistos. Já que os ISPs podem variar de quase acidentes a danos permanentes ou morte, os sistemas hospitalares percebem cada vez mais seu papel em fornecer um sistema de apoio institucional. Seja por erro sistêmico ou relacionado ao profissional de saúde, nós nos sentimos responsáveis pelo desfecho. Um profissional de saúde envolvido em um ISP tem uma chance maior de desenvolver transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).4
O que sabemos sobre a SSV? Primeiro, devemos aceitar que é extremamente comum. A prevalência é estimada em 10,4 a 43,3% dos profissionais após uma experiência traumática.5 Cada um de nós expressará sua própria reação. Essas reações podem ser emocionais, cognitivas e comportamentais. Nossas estratégias de enfrentamento podem impactar nossos pacientes, outros profissionais e nossas famílias, bem como nós mesmos. Alguns profissionais de saúde podem achar que não merecem ser rotulados como uma segunda vítima. Na noite de 1º de outubro, uma de nossas enfermeiras da UTIP sentiu que não havia contribuído para o cuidado de nossos mais de 200 pacientes. Ela ficou parada em uma das portas duplas da Emergência para a sala de cirurgia e passou o tempo todo acionando repetidamente a placa da porta que abria a porta, permitindo que os profissionais de saúde passassem. Eu disse a ela que, pessoalmente, passei correndo para lá e para cá pelo corredor mais de cem vezes para tratar de pacientes e nunca tive que esperar para abrir as portas porque ela estava lá. Ela passou por um trauma emocional naquela noite, como todos nós.
Como lidamos com a SSV? Nossa saúde mental e como respondemos ao estresse emocional é uma parte única de cada um de nós. Processamos, entendemos, enfrentamos e saímos do outro lado após uma experiência traumática em nosso próprio ritmo. Se não formos capazes de reconhecer os sinais da SSV e aprender a como lidar com isso, podemos acabar desenvolvendo sintomas físicos, incluindo dor no peito, dores de cabeça, falta de concentração, hipervigilância ou sudorese, para citar alguns.6 Mecanismos de enfrentamento para ajudar a reconstruir ou manter a saúde e a força física pessoal incluem o seguinte:
- Retornar às atividades diárias, que incluem exercícios, leitura, socialização, escrever um diário ou descobrir o que é melhor para você.
- Interagir com familiares que podem proporcionar conforto.
- Aprender a processar emoções e compreender a experiência.
- Encontrar e receber ajuda de amigos e colegas.
- Mais importante ainda, saber quando procurar ajuda profissional.
Sinais de que você pode precisar buscar ajuda profissional para a SSV podem vir de ter sonhos e pensamentos que evocam emoções dolorosas e interferem na vida diária. Outros podem notar mudanças dramáticas em seu comportamento e tentar ajudá-lo. Se você tiver pensamentos de automutilação, é fundamental buscar ajuda e orientação profissional durante o processo de cura. Sua capacidade de lidar com a situação pode ser influenciada por suas circunstâncias pessoais atuais, experiências passadas e seus valores e crenças essenciais. A força do relacionamento com os entes queridos e, é claro, o autocuidado e o amor próprio são vitais.
A intervenção pode ajudar a guiar você através de sua experiência e ajudar a processar suas emoções.
Tão importante quanto o enfrentamento é a resiliência. Com o tempo e com a maturidade, aprende-se a dobrar sem quebrar. Isso exige o uso de ferramentas para suportar o evento traumático e aprender a se recuperar rapidamente de situações difíceis. Perceber a importância de uma rede de apoio forte ajudará a combater reações comuns. Podemos sentir exaustão física e mental e nos sentir atordoados, entorpecidos, tristes, desamparados e ansiosos. Esses sentimentos podem cair em uma espiral, com a segunda vítima repetindo e revivendo a experiência indefinidamente. Sem intervenção, as sequelas de longo prazo podem evoluir para TEPT, depressão, pensamentos suicidas e/ou abuso de álcool ou drogas.
Acredito que todos nós temos várias experiências de produção de SSV durante nossas carreiras, algumas mais poderosas do que outras. Sempre que nos sentimos responsáveis por um desfecho inesperado, evento adverso ou erro clínico, isso nos afeta. Como isso pode não nos afetar? A compaixão e o desejo de ajudar as pessoas estão na essência dos profissionais de saúde e nos deixam vulneráveis a nos tornarmos a segunda vítima. Por exemplo, quando um colega liga para você para relatar uma experiência estressante de um paciente que resultou em um desfecho indesejado, independentemente de haver ou não dano ao paciente, ele não está simplesmente expressando seus sentimentos como uma segunda vítima? Quando algo negativo acontece, tão simples quanto errar ao colocar um acesso intravenoso ou, mais sério, não diagnosticar um infarto do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSSST), primeiro nos julgamos e nos sentimos responsáveis. Você pode estar em uma situação em que “fez tudo o que podia” e o desfecho não foi tão favorável quanto esperava. Se essa experiência não for processada por nossos mecanismos de proteção pessoal a tempo, podemos começar a sentir dúvida, ansiedade, depressão, preocupação ou mesmo negação e medo de repetir o mesmo erro. Quando o curso do paciente culmina em uma internação hospitalar prolongada ou em um processo por negligência médica, nós temos dificuldades para prosseguir. Um armador de basquete que tiver uma sequência de erros de arremesso pode continuar pedindo a bola, acreditando que seu próximo arremesso vai entrar. Frequentemente, não reagimos da mesma maneira. Em vez disso, nós nos perguntamos se todos sabem o que aconteceu. Questionamos se isso passará e se nossa reputação será afetada irreversivelmente. Como tudo isso pode não levar à temida síndrome de burnout? Desde cedo, somos ensinados a compartimentar nossos sentimentos na medicina. Seguir em frente. Aceitar o desfecho. Aprender com isso e não repetir. Não deixar isso dominar seus pensamentos. A família e os amigos podem ver esse comportamento como aparentemente severo, antipático ou estoico quando envolve membros da família.
Muitos contribuíram para a nossa compreensão e tratamento da SSV. Entre eles está Kathy Platoni, PsyD, especialista no tratamento de TEPT e trauma de guerra.7 Ao longo de sua carreira como psicóloga do Exército dos EUA, tanto na condição ativa quanto na reserva do Exército, ela desenvolveu programas que abordam o controle do estresse em combate e enfatizou a importância dos grupos de discussões e do manejo de crises. Como uma sobrevivente do massacre de Fort Hood, ela aprendeu com a experiência pessoal e sua conhecida citação: “O trauma é tão inesquecível” é frequentemente mencionada.7 Ela é uma defensora declarada de que um tiroteio em massa é um ato de terrorismo.
Barbara Van Dahlen, outra líder na área de SSV, criou o giveanhour em 2005 para fornecer atendimento de saúde mental gratuito aos membros do serviço ativo da Guarda Nacional e da Reserva. Sua missão é desenvolver redes nacionais de voluntários capazes de ajudar aqueles que passaram por condições agudas e crônicas relacionadas ao estresse traumático que surgem em nossa sociedade. Mais recentemente, o giveanhour fez parceria com o #FirstRespondersFirst para oferecer serviços de saúde mental durante a pandemia de COVID-19. Suas atividades destacaram que a SSV nem sempre está diretamente relacionada a um evento violento. Por exemplo, uma intubação planejada de uma via aérea difícil em que você pede ajuda e que evolui para uma intubação difícil prolongada pode fazer com que você questione suas habilidades, decisões, a situação e, possivelmente, você mesmo. Enquanto escrevia esta revisão, uma residente falhou em duas tentativas de administrar injeção intravenosa em uma criança de 18 meses. Após o caso, ela expressou como ela se sentiu horrível a respeito da situação, dizendo que ela machucou o bebê. Ela expressou sua preocupação por não ser boa o suficiente para prosseguir com a carreira na anestesia pediátrica. Sentamos e conversamos, fizemos uma espécie de debate e falamos sobre as dificuldades e os sucessos de nossos dias. Garanti a ela que, com tempo, treinamento e dedicação, ela superaria esse obstáculo.
Os estágios de recuperação da SSV são bem descritos, não sendo muito diferente dos estágios de Kubler-Ross de resposta à morte ou perda.8 Inicialmente, a segunda vítima apresenta sentimentos de caos e reação ao acidente, uma perda inicial de controle provocada pelo evento. Idealmente, o efeito negativo do evento adverso é limitado por colegas que ajudam a fornecer cuidados contínuos e prevenir danos adicionais. A segunda vítima então repassa o evento em sua mente e pode ter dificuldade de foco ou concentração devido a pensamentos intrusivos. Mais uma vez, os colegas desempenham um papel vital de apoio enquanto a vítima trabalha para restaurar a integridade pessoal. Entretanto, isso não é o fim, já que a inquisição e a investigação continuam, possivelmente culminando em litígio. Ao passar por esse estágio, é importante receber os primeiros socorros emocionais e buscar apoio de colegas ou de um profissional. Por fim, a segunda vítima consegue seguir em frente e se recuperar. Alguns profissionais, infelizmente, limitam sua prática e até deixam a prática médica em decorrência de sua experiência traumática.
No primeiro aniversário do Las Vegas Mass Casualty Event de 1º de outubro, nosso hospital montou um memorial na hora do almoço para sobreviventes e profissionais de saúde, uma espécie de velório de aniversário, para proporcionar conforto uns aos outros e buscar significado no terror indescritível que vivemos juntos. Esse evento é um círculo que nunca se fecha, uma história sem fim, mas estávamos unidos pelo entendimento de que nós, e a vida, devemos continuar. Choramos até rir. Contamos histórias e tiramos fotos, celebramos a vida e as vidas perdidas. No final, todos nós saímos pela porta do salão de reuniões, juntos, marcados por aquela experiência e a crença de que seguiríamos em frente.
Nós, como anestesiologistas, carregamos uma carga diária substancial. As necessidades do paciente, as demandas da prática médica, as exigências da família e as “pontuações de satisfação” de nossos pacientes e do sistema hospitalar pesam continuamente sobre nós. No mundo imediato de hoje, com acesso instantâneo às informações da internet, não há tolerância para um desfecho ruim. Os pacientes geralmente chegam com seu próprio diagnóstico, plano de tratamento e prognóstico baseado no WebMD que esperam que ocorra sem problemas. Isso coloca nossa prática médica sob crescente escrutínio. Em outras profissões, os erros são mais facilmente aceitos e, às vezes, até esperados. Com que frequência levamos nosso veículo para conserto e temos que voltar para a oficina em uma semana quando a “luz de manutenção” acende novamente? Aceitamos isso, dizemos a nós mesmos que não foi um resultado inesperado e simplesmente lidamos com isso. Na medicina, “a luz” acender de novo é inquestionavelmente inaceitável. As demandas e expectativas que são colocadas sobre nós a cada hora, dia, mês, podem levar ao esgotamento. O esgotamento é maior na área de saúde do que em qualquer outro setor. Nossas expectativas pessoais continuam a nos pressionar diariamente. Mas o quanto? Quando é que a nossa segurança e a segurança do nosso paciente ficam comprometidas? Manejar a SSV, em nós mesmos e nos outros, é um componente importante do profissionalismo. Devemos reconhecer a causa e nos ensinar a como mitigar os efeitos.
Stephanie Lynn Davidson DO, FASA, é docente principal, HCA/Mt View/Sunrise Health GME e diretora de Qualidade/segurança do paciente, HCA/Mt View/Sunrise Health GME e chefe de Anestesia, Summerlin Hospital, Las Vegas, Nevada, EUA
O autor não apresenta conflitos de interesse.
Referências
- Woods A. “Is this real?’: Seven hours of chaos, bravery at Las Vegas hospital after mass shooting”. The Arizona Republic. November 11, 2017.
- Scott SD, Hirschinger LE, Cox KR, et al. The natural history of recovery for the healthcare provider ‘second victim’ after adverse patients events. Qual Saf Health Care. 2009 5:325–530.
- Vanhaecht, K, Sevs, D, Schouten L, et al. Duration of second victim symptoms in the aftermath of patient safety incident and association with the level of patient harm: a cross-sectional study in the Netherlands. BMJ Open. 2019,9:e029923.
- Wu, AW, Shapiro, J, Harrison R, et al. The impact of adverse events on clinicians: what’s in a name? J Patient Saf. 2020 16:65–72.
- Seys D, Wu AW, Van Gerven E, et al. Health care professionals as second victims after adverse events: a systematic review. Eval Health Prof. 2013:36:135–162.
- Karydes, H. Second Victim Syndrome: a doctor’s hidden struggle. Physician, May, 2019.
- Platoni, K. Personal bio. Google. 2021. www.drplatoni.com Accessed May 19, 2021.
- Scott, S. The second victim phenomenon: a harsh reality of heath care professions. https://psnet.ahrq.gov/perspective/second-victim-phenomenon-harsh-reality-health-care-professions. Accessed May19,2021.