Tratamento da COVID-19 no ambiente perioperatório

Jeremy Laney, MD; Joseph W. Szokol, MD, FASA

Médico cirurgiãoNos últimos dois anos, a pandemia da COVID-19 criou diversas barreiras e desencadeou a desolação em quase todas as pessoas do planeta. As infecções ultrapassaram 445 milhões de casos no mundo todo, com mais de 5,9 milhões de mortes,1,2 e esses números continuam a subir à medida que os esforços globalizados da vacinação ficam para trás. Os sistemas de saúde do mundo todo enfrentaram desafios únicos conforme os leitos ficaram saturados com pacientes infectados durante os vários surtos da pandemia. O desafio para os sistemas de saúde mitigarem riscos aos pacientes ao prestar serviços padrão permanece, à medida que a imunização contra o SARS-CoV-2 continua se propagando e o censo hospitalar de pacientes infectados flutua.

Os sistemas de saúde precisam voltar à normalidade e oferecer serviços de cirurgia e procedimentos com segurança e, ao mesmo tempo, mitigar o risco aos pacientes com SARS-CoV-2. Determinar o momento ideal dos procedimentos para pacientes que se recuperaram da infecção por COVID-19 e o nível apropriado de avaliação pré-operatória é desafiador, tendo em vista a atual ausência de evidências ou precedentes para a doença. De acordo com a Declaração Conjunta criada pela APSF e pela ASA, “Cirurgias eletivas devem ser realizadas em pacientes que se recuperaram da infecção por COVID-19 somente com concordância mútua entre o profissional de anestesia e o cirurgião ou o médico que realizará o procedimento”.3 Isso deve ser feito em conjunto com a tomada de decisão compartilhada com o paciente.

Os dados mais robustos que analisam os desfechos perioperatórios de pacientes com infecção por SARS-CoV-2 são provenientes do estudo COVIDSurg Collaborative and GlobalSurg Collaborative,4 um estudo de coorte internacional e prospectivo, que incluiu no total 140.231 pacientes em 1.674 hospitais de 116 países. O estudo avaliou as complicações no pós-operatório em pacientes com diagnóstico de infecção por SARS-CoV-2, com medição do desfecho primário da mortalidade no pós-operatório em 30 dias e medição do desfecho secundário de complicações no pós-operatório em 30 dias (definidas como pneumonia, síndrome do desconforto respiratório agudo e ventilação pós-operatória inesperada). Para pacientes com diagnóstico de SARS-CoV-2 antes da intervenção cirúrgica, as taxas de mortalidade foram as seguintes: 9,1% de 0 a 2 semanas antes, 6,9% de 3 a 4 semanas antes, 5,5% de 5 a 6 semanas antes e 2,0% em ≥7 semanas (Figura 1). As taxas de mortalidade do grupo de ≥7 semanas não demonstrou diferença significativa quando comparada ao grupo de controle não infectado. Entre os participantes com exame positivo para SARS-CoV-2, os pacientes sintomáticos demonstraram aumento significativo da taxa de mortalidade em 30 dias em todos os subgrupos de intervalo de tempo, quando comparados aos assintomáticos ou com resolução dos sintomas no momento da cirurgia. Os pacientes infectados com SARS-CoV-2 de 0 a 2, de 3 a 4 e de 5 a 6 semanas antes da cirurgia também demonstraram maiores taxas de complicações pulmonares no pós-operatório, sendo que aqueles com sintomas em curso demonstraram o maior risco. As taxas de complicação do subgrupo de ≥7 semanas espelharam as dos participantes não infectados.4

Figura 1: Taxas de mortalidade de pacientes com diagnóstico de SARS-CoV-2 antes da cirurgia.

Figura 1: Taxas de mortalidade de pacientes com diagnóstico de SARS-CoV-2 antes da cirurgia.

O início da pandemia da COVID-19 resultou em sobrecarga das internações. As tentativas de minimizar as transmissões hospitalares, bem como a falta de dados iniciais sobre o risco da cirurgia eletiva para pacientes com COVID-19 positivo, o que foi discutido na seção anterior, causaram milhões de cancelamentos e atrasos em cirurgias eletivas no mundo todo. A unidade do Instituto Nacional de Pesquisas em Saúde (National Institute for Health Research, NIHR) de Cirurgia Global coletou dados de 1.674 hospitais para investigar o risco perioperatório aos pacientes infectados com SARS-CoV-2. Esse conjunto de dados contém informações valiosas aos profissionais responsáveis por mitigar o risco em candidatos a cirurgias. Apesar disso, o estudo de larga escala tem limitações. O diagnóstico da infecção por SARS-CoV-2 não foi padronizado e utiliza as estratégias de teste pré-operatório únicas de cada instituição, deixando em dúvida o tempo real entre a infecção e a cirurgia. Tendo em vista a dependência de um único teste pré-operatório de rotina, é provável que um subgrupo de participantes que se recuperaram recentemente de uma infecção prévia por SARS-CoV-2 tenham sido erroneamente classificados como não infectados. As dificuldades pragmáticas associadas à condução de um estudo de coorte dessa escala geraram limitações na subanálise importante, sendo que, com esse grupo de dados, o ideal teria sido avaliar os desfechos entre grupos controlando o tipo de cirurgia, o tipo de anestesia, o dispositivo de vias aéreas usado e as comorbidades crônicas. Os desfechos secundários calculados no estudo avaliaram as taxas de complicações pulmonares, apesar de ser bem estabelecido que a SARS-CoV-2 pode causar uma série de complicações subsistêmicas, como: eventos tromboembólicos, miocardite, acidente vascular cerebral, deficiências cognitivas e lesão renal.5 Por fim, os dados desse estudo foram coletados em outubro de 2020, antes dos esforços de ampla distribuição da vacina e do surgimento de diversas variantes. À medida que a imunização se propagar, por inoculação e infecção, provavelmente esses desfechos mudarão.

Estudos subsequentes com o objetivo de avaliar achados semelhantes replicaram os desfechos encontrados no estudo COVIDSurg Collaborative. Deng et al. publicaram recentemente um estudo retrospectivo que sugere piores desfechos de pós-operatório em pacientes que realizaram cirurgia em até 8 semanas após o diagnóstico de SARS-CoV-2.6 Além disso, os autores observaram que um menor intervalo entre diagnóstico e intervenção está correlacionado a uma maior taxa de complicações respiratórias no pós-operatório.6

A American Society of Anesthesiologists (ASA) e a American Patient Safety Foundation (APSF) publicaram uma declaração conjunta em março de 2021 (recém-atualizada em fevereiro de 2022) com recomendações para os médicos quanto ao momento apropriado de cirurgias eletivas em pacientes infectados com SARS-CoV-2. Com base nos dados acumulados na época, a declaração recomendou os seguintes tempos de espera para pacientes infectados:

  • Quatro semanas para pacientes assintomáticos ou recuperados de sintomas não respiratórios leves.
  • Seis semanas para pacientes sintomáticos que não precisaram de internação.
  • De 8 a 10 semanas para pacientes sintomáticos diabéticos, imunodeprimidos ou hospitalizados.
  • Doze semanas para pacientes internados em unidade de terapia intensiva por infecção de COVID-19.3

Essas recomendações não são exaustivas e podem não refletir os dados demográficos dos pacientes que os profissionais de saúde inevitavelmente atenderão. São recomendações fluidas que oferecem aos profissionais uma estrutura para ajudar a estimar um relação risco/benefício para decifrar o momento apropriado da intervenção de que os pacientes precisam. Em fevereiro de 2022, o Reino Unido publicou diretrizes semelhantes de um conglomerado de especialistas multidisciplinares em perioperatório, com recomendações análogas, desencorajando a intervenção cirúrgica em até 7 semanas após o diagnóstico de SARS-CoV-2.7

Embora haja cada vez mais informações para a determinação do momento da cirurgia após infeção por COVID-19, infelizmente, os dados e a ciência continuam defasados frente às novas variantes, bem como os dados que apoiam a premissa de que pacientes vacinados correm menor risco de complicações no pós-operatório em comparação com pacientes não vacinados.8 De acordo com o CDC, a variante Ômicron causa uma doença menos grave e tem maior probabilidade de infectar a orofaringe e a nasofaringe, sem infiltração e danos aos pulmões.9 Os profissionais de perioperatório usaram essas observações para concluir prematuramente que os pacientes vacinados em recuperação da Ômicron correm menos risco de eventos adversos. Apesar de plausível, tal conclusão continua não comprovada. Embora continuem surgindo dados que podem fornecer aos médicos e pacientes melhores estratégias de tratamento, os profissionais de saúde continuarão precisando de mais dados para preencher as lacunas de conhecimento das subanálises diferenciadas.

 

Jeremy Laney, MD, é professor clínico assistente no Departamento de Anestesiologia, Divisão Cardiotorácica, da Keck School of Medicine da USC.

Joseph Szokol, MD, FASA, é diretor de políticas de saúde da American Society of Anesthesiologists e professor clínico do Departamento de Anestesiologia da Keck School of Medicine da USC. Também é diretor executivo de Mentoria e Desenvolvimento de Médicos do Departamento de Anestesiologia da Keck School of Medicine da USC.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

  1. Centers for Disease Control. CDC COVID Data tracker. https://covid.cdc.gov/covid-data-tracker Accessed on March 25, 2022.
  2. World Health Organization. WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. https://covid19.who.int Accessed on March 25, 2022.
  3. ASA and APSF Joint Statement on Elective Surgery/Procedures and Anesthesia for Patients after COVID-19 Infection. Updated Feb. 22, 2022. https://www.asahq.org/about-asa/newsroom/news-releases/2022/02/asa-and-apsf-joint-statement-on-elective-surgery-procedures-and-anesthesia-for-patients-after-covid-19-infection. Accessed on April 12, 2022.
  4. COVIDSurg Collaborative, GlobalSurg Collaborative, Nepogodiev D, et al. Timing of surgery following SARS-CoV-2 infection: an international prospective cohort study. Anaesthesia. 2021;76:748–758.
  5. Wijeysundera DN, Khadaroo RG. Surgery after a previous SARS-CoV-2 infection: data, answers and questions. Anaesthesia. 2021;76:731–735.
  6. Deng JZ, Chan JS, Potter AL, et al. The risk of postoperative complications after major elective surgery in active or resolved COVID-19 in the United States. Ann Surg. 2022;275:242–246.
  7. El-Boghdadly K, Cook TM, Goodacre T, et al. Timing of elective surgery and risk assessment after SARS-CoV-2 infection: an update: a multidisciplinary consensus statement on behalf of the Association of Anaesthetists, Centre for Perioperative Care, Federation of Surgical Specialty Associations, Royal College of Anaesthetists, Royal College of Surgeons of England. Anaesthesia. 2022 Feb 22: 1–8. 35194788. Accessed on April 19, 2022.
  8. Prasad NK, Lake R, Englum BR, et al. COVID-19 vaccination associated with reduced postoperative SARS-CoV-2 infection and morbidity. Ann Surg. 2022;275:31–36.
  9. Omicron variant: what you need to know. Updated Mar. 29, 2022. https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/variants/omicron-variant.html. Accessed on April 19, 2022.