Considerações sobre segurança e dor da anestesia em pacientes com câncer

Dylan Irvine, BScH; Jeffrey Huang, MD

Introdução:

Paciente com câncerA subespecialidade de oncoanestesia tem gradualmente ganhado força nos últimos anos. Além das comorbidades que alguns pacientes com câncer apresentam, as interações e consequências dos esquemas antineoplásicos também devem ser levadas em conta na elaboração de um plano anestésico. Esses novos riscos apresentam aos profissionais de oncoanestesia desafios no modo de tratamento dos pacientes com segurança. Considerações pré-operatórias incluem o efeito da quimioterapia na administração da anestesia. Considerações intraoperatórias incluem a avaliação dos riscos de hipotermia intraoperatória em pacientes com câncer, considerações de posição do paciente e lesão do nervo periférico e monitorização do paciente anestesiado. Considerações pós-operatórias incluem o controle de efeitos compostos de dor no pós-operatório com a dor existente da malignidade, além de associações entre suporte psicológico ao paciente e desfechos pós-cirúrgicos.

Considerações do pré-operatório

Efeito da quimioterapia na administração da anestesia: considerações cardíacas e pulmonares

O profissional de anestesia deve levar em conta uma abordagem especializada para a administração da anestesia em pacientes que estão realizando quimioterapia e que requerem cirurgia eletiva ou de emergência. Dois dos sistemas mais comuns afetados pelas toxicidades da quimioterapia são o cardíaco e o pulmonar, sendo que o grau de toxicidade depende dos agentes específicos aplicados, da dosagem e da duração do uso.1 Os quimioterápicos comuns associados à toxicidade cardíaca são bussulfano, cisplatina, ciclofosfamida, doxorrubicina e 5-fluorouracil.1 Para tais pacientes, a função cardíaca e respiratória deve ser cuidadosamente avaliada antes da anestesia a fim de identificar o início e a etiologia de potenciais complicações. Em situação de emergência, o uso de ultrassom no local de atendimento (Point of Care Ultrasound, PoCUS) pode fornecer informações aos profissionais de anestesia referentes a status do volume, função cardíaca e função respiratória2 em pacientes que não possuírem avaliação pré-operatória adequada.

Os pacientes tratados com quimioterapia por antraciclinas, uma família de fármacos extraídos de Streptomyces spp, como doxorrubicina, podem desenvolver insuficiência intraoperatória aguda no ventrículo esquerdo refratária a agonistas de receptores de beta-adrenérgicos.1 Tal insuficiência de início agudo no ventrículo esquerdo provavelmente se deve ao risco da cardiotoxicidade induzida pela quimioterapia associada a essa classe de fármacos, o que limita o uso em alguns pacientes.3 Em pacientes que desenvolveram tal cardiotoxicidade, indica-se a administração de inibidores da fosfodiesterase.1

Os quimioterápicos comuns associados à toxicidade pulmonar são metotrexato, bleomicina, bussulfano, ciclofosfamida, citarabina e carmustina.1 Os pacientes podem sofrer complicações pulmonares, como pneumonite intersticial de dose variável e doença pulmonar veno-oclusiva.1 A apresentação inicial pode se limitar a tosse seca, falta de ar durante exercício e alterações mínimas na radiografia do tórax.4 Contudo, no pós-operatório, esses pacientes podem precisar de um período em ventilação mecânica.4 Observou-se que a concentração elevada de oxigênio inspirado aumenta o risco dos pacientes desenvolverem lesão pulmonar induzida pela bleomicina.4 Sendo assim, recomenda-se reduzir a concentração de oxigênio no intra e pós-operatório em pacientes tratados com bleomicina a fim de reduzir o risco de complicações respiratórias.4,5

Considerações do intraoperatório

Hipotermia intraoperatória em pacientes com câncer

Entre 50% e 70% dos pacientes cirúrgicos sofrerão hipotermia intraoperatória.6 Identificou-se que a duração da cirurgia, a idade e a temperatura corporal basal são fatores de risco para o desenvolvimento de hipotermia intraoperatória.7 Pacientes com câncer submetidos a tratamento por cirurgia estão frequentemente sujeitos ao aumento da duração da cirurgia e da anestesia, estando, portanto, em maior risco de desenvolver hipotermia intraoperatória (temperatura corporal central < 36,0° C durante a cirurgia8). Em comparação com pacientes em normotermia no intraoperatório, a hipotermia intraoperatória está associada a maior tempo de recuperação da cirurgia com anestesia geral, arritmias, coagulopatias, maior duração da intubação e maior período de internação no pós-operatório.6 A hipotermia durante a ressecção do câncer demonstrou ter efeitos negativos significativos na função imunológica e nos níveis de citocina, especialmente em pacientes submetidos a cirurgia de câncer gastrointestinal.6 Em relação a pacientes em normotermia, os pacientes com câncer em hipotermia intraoperatória podem apresentar aumento da incidência de complicações pós-operatórias de qualquer tipo, além de maior estado patológico e maior taxa de reincidência em 12 meses.8

Consequentemente, para duração de anestesia superior a 60 minutos, o aquecimento intraoperatório deve ocorrer por meio de aquecimento convectivo com manta térmica.9 As infusões ou transfusões intraoperatórias devem ser aquecidas.9 No pós-operatório, os pacientes devem ser submetidos a isolamento térmico para prevenir o desenvolvimento de hipotermia e medicamentos como clonidina ou meperidina podem ser administrados para controlar tremores.9 A dexmedetomidina exibe eficácia semelhante a agentes antiterrores como clonidina ou meperidina, mas pode aumentar o risco da sedação, hipotensão, boca seca e bradicardia.10

Posicionamento intraoperatório do paciente e prevenção de lesão dos nervos periféricos

Em cirurgias de ressecção tumoral, a lesão nervosa geralmente ocorre devido à compressão e ao impacto das estruturas neurais resultantes do tecido tumoral. O posicionamento inadequado do paciente também pode causar lesão dos nervos periféricos. O nervo ulnar, o plexo braquial e o nervo fibular comum são os mais vulneráveis à lesão durante a cirurgia.11 Os profissionais de anestesia devem ficar atentos durante o posicionamento inicial e durante a cirurgia.11 O uso de braçadeiras acolchoadas ou colocação de acolchoamento ao redor do cotovelo demonstrou reduzir o risco de neuropatia da extremidade superior no perioperatório.12 Outros acolchoamentos podem ser colocados estrategicamente para limitar a pressão de superfícies rígidas na cabeça da fíbula, o que tem sido usado para reduzir o risco de neuropatia fibular.12

Monitorização intraoperatória de paciente com câncer anestesiado

A monitorização intraoperatória de pacientes de alto risco (definidos pelo histórico do paciente, comorbidades, idade, índice de massa corporal, status da ASA, fragilidade, baixa mobilidade, presença de doença terminal e tipo e complexidade da cirurgia) pode permitir que os profissionais de anestesia detectem o início e a etiologia de estados de choque com maior antecedência, de forma que as intervenções direcionadas possam ser implementadas. Em pacientes hemodinamicamente estáveis, a monitorização eletrocardiográfica contínua, aferições não invasivas de pressão arterial, monitorização do dióxido de carbono expirado e oximetria de pulso periférico podem ser adequadas para o intraoperatório.2 Já nos hemodinamicamente instáveis, os profissionais de anestesia devem considerar uma linha arterial para aferição invasiva contínua da pressão arterial e gasometria arterial.2 A implementação do PoCUS na prática clínica pode fornecer informações adicionais sobre o status do volume, a função cardíaca, o status pulmonar e a função respiratória, e está surgindo como abordagem fundamental para detecção antecipada de sangramento intra-abdominal ou intratorácico ou deficiência de fluidos.2

Considerações do pós-operatório:

Paciente com câncer e médicoEfeito composto de dor pós-operatória e dor existente devido a uma malignidade

É importante que os profissionais de anestesia levem em conta a complexidade do tratamento da dor pós-operatória em pacientes com câncer. As barreiras para o alívio adequado da dor em pacientes com câncer podem ser políticas (p. ex.: disponibilidade para receber opioides), relacionadas ao prescritor (p. ex.: educação insuficiente sobre a avaliação e o tratamento da dor, apreensão na prescrição de opioides aos pacientes, preocupações com depressão respiratória ou sedação excessiva) ou motivadas pelo paciente (p. ex.: receio de dependência, receio de que o tratamento signifique ser os estágios finais da vida, receio de efeitos colaterais).13 O tratamento farmacológico da dor oncológica leve geralmente envolve analgesia com não opioides, como paracetamol/acetaminofeno e/ou anti-inflamatórios não esteroides (AINES). O tratamento da dor oncológica moderada a grave pode envolver a prescrição de opioides “fracos”, ou menos potentes, e “fortes”, ou mais potentes, respectivamente.13 Em pacientes com câncer no pós-operatório, o tratamento da dor torna-se mais complicado devido ao efeito potencial da composição entre a dor oncológica existente e a dor que pode se manifestar durante o período pós-operatório. Observou-se dor pós-operatória persistente em 5% a 10% dos pacientes com câncer, geralmente resultante de lesão nervosa seguida por sensibilização central em resposta ao trauma.14

Muitos pacientes com câncer têm recebido opioides de longo prazo e alta dose, portanto, os requisitos do opioide durante o período perioperatório aumentarão.15 Nesses pacientes, estratégias de analgesia multimodal são importantes para oferecer uma referência da analgesia não opioide, por exemplo, pela administração de paracetamol/AINEs e moduladores de subunidade alfa-2-delta, como a gabapentina.15 A cetamina intravenosa perioperatória reduz a necessidade de analgésicos e a intensidade da dor no pós-operatório.16 Uma meta-análise mostrou que ainda não foram confirmados benefícios da infusão de lidocaína intraoperatória para reduzir a dor.17

Por outro lado, a infusão anestésica local com aplicação de cateter de longo prazo demonstrou um aumento na incidência da dor crônica no pós-operatório.18 Também foram utilizados bloqueios de nervos periféricos para anestesia regional no pós-operatório, sendo que as complicações, o tempo de desempenho e os requisitos de anestesia local aumentaram durante a aplicação de PoCUS.18 Uma vantagem dos bloqueios de nervos periféricos no tratamento da dor pós-operatória, em relação aos bloqueios neuroaxiais centrais ou à anestesia geral, é a redução de efeitos colaterais sistêmicos, como bloqueio simpático e retenção urinária.18 Recentemente, o surgimento de bloqueios de planos da fáscia expandiu ainda mais as aplicações de anestesia local em termos de tratamento da dor pós-operatória para quadros envolvendo o tórax e o abdômen.19

Considerações psicológicas do paciente

No pós-operatório de pacientes com câncer, o estresse psicológico, especialmente a depressão, é uma questão emergente no tratamento. Nesses pacientes, o encaminhamento e o acesso ao apoio e aconselhamento psicológico são importantes para um melhor desfecho. Um estudo com pacientes com câncer submetidos a ressecção cirúrgica curativa para câncer pulmonar primário demonstra que a depressão e a ansiedade após a cirurgia foram agravadas pela presença de sintomas residuais após a intervenção cirúrgica.20 Nesse estudo, identificou-se toracotomia, dispneia pós-operatória, dor grave e diabetes mellitus como fatores de risco para depressão pós-operatória após o controle da presença de depressão pré-operatória.20

Fornecer acesso ao aconselhamento psicológico é importante em todos os estágios do tratamento de câncer.21 Demonstrou-se que o aconselhamento psicológico beneficia os pacientes em todos os estágios do tratamento, desde o diagnóstico inicial ao tratamento e controle de efeitos funcionais de longo prazo.21 O estresse psicológico também é comum em pacientes com câncer de mama submetidas a mastectomia. Em comparação com os controles, a incidência de depressão em pacientes submetidas a mastectomia de câncer de mama teve aumento significativo até três anos após a mastectomia, especialmente em adultas mais jovens.22 Superar e prevenir a depressão pós-operatória nessas pacientes por meio de aconselhamento psicológico pode melhorar a morbidade e a mortalidade delas.

Conclusão

Os desafios enfrentados pelos profissionais de oncoanestesia no manejo seguro de pacientes com câncer no perioperatório são diversos e complexos. Entretanto, é preciso considerar os aspectos apropriados dos potenciais riscos entre a administração de anestesia e os esquemas antineoplásicos, a fim de garantir a melhor qualidade do tratamento ao atender pacientes vulneráveis.

 

Dylan Irvine é aluno do segundo ano de medicina da Nova Southeastern University College of Osteopathic Medicine, Davie, FL.

Jeffrey Huang é integrante sênior de Anestesiologia, Desfechos de Saúde e Comportamento do Moffitt Cancer Center e professor de ciência oncológica da University of South Florida, FL.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

  1. Gehdoo RP. Anticancer chemotherapy and it’s anaesthetic implications (Current Concepts). Indian J Anaesth. 2009;53:18–29. 20640073 Accessed April 12, 2022.
  2. Aseni P, Orsenigo S, Storti E, et al. Current concepts of perioperative monitoring in high-risk surgical patients: A review. Patient Saf Surg. 2019;13:1–9. 31660064 Accessed April 19, 2022.
  3. Agunbiade TA, Zaghlol RY, Barac A. Heart failure in relation to tumor-targeted therapies and immunotherapies. Methodist Debakey Cardiovasc J. 2019;15:250–257. 31988685 Accessed April 19, 2022.
  4. Allan N, Siller C, Breen A. Anaesthetic implications of chemotherapy. Contin Educ Anaesthesia, Crit Care Pain. 2012;12:52–56. https://doi.org/10.1093/bjaceaccp/mkr055 Accessed April 19, 2022.
  5. Wuethrich PY, Burkhard FC. No perioperative pulmonary complications after restricted oxygen exposition in bleomycin-treated patients: a short report. ISRN Anesthesiol. 2011;2011:1–3. https://doi.org/10.5402/2011/143189 Accessed April 19, 2022.
  6. Zhao X. Effect of hypothermia prevention in patients undergoing gastrointestinal cancer surgery. Int J Clin Exp Med. 2020;13:7638–7645. www.ijcem.com/ Accessed April 19, 2022.
  7. Chen HY, Su LJ, Wu HZ, et al. Risk factors for inadvertent intraoperative hypothermia in patients undergoing laparoscopic surgery: A prospective cohort study. PLoS One. 2021;16(9 September):1-12. 0257816 Accessed April 19, 2022.
  8. Morozumi K, Mitsuzuka K, Takai Y, et al. Intraoperative hypothermia is a significant prognostic predictor of radical cystectomy especially for stage II muscle-invasive bladder cancer. Medicine (Baltimore). 2019;98:e13962. 30633177. Accessed April 19, 2022.
  9. Torossian A, Bräuer A, Höcker J, et al. Vermeidung von unbeabsichtigter perioperativer Hypothermie. Dtsch Arztebl Int. 2015;112:166–172. 25837741. Accessed April 19, 2022.
  10. Liu ZX, Xu FY, Liang X, et al. Efficacy of dexmedetomidine on postoperative shivering: a meta-analysis of clinical trials. Can J Anesth. 2015;62:816–829. 25851018. Accessed April 19, 2022.
  11. Hewson DW, Bedforth NM, Hardman JG. Peripheral nerve injury arising in anaesthesia practice. Anaesthesia. 2018;73:51–60. 29313904. Accessed April 19, 2022.
  12. Practice Advisory for the Prevention of Perioperative Peripheral Neuropathies. Anesthesiology. 2018;128:741–754. 29509515. Accessed April 19, 2022.
  13. Auret K, Schug SA. Pain management for the cancer patient—current practice and future developments. Best Pract Res Clin Anaesthesiol. 2013;27:545–561. 24267557. Accessed April 19, 2022.
  14. Heaney Á, Buggy DJ. Can anaesthetic and analgesic techniques affect cancer recurrence or metastasis? Br J Anaesth. 2012;109(SUPPL1):i17–i28. 23242747. Accessed April 19, 2022.
  15. Huxtable CA, Roberts LJ, Somogyi AA, et al. Acute pain management in opioid-tolerant patients: A growing challenge. Anaesth Intensive Care. 2011;39:804–823. 21970125. Accessed April 19, 2022.
  16. Brinck ECV, Tiippana E, Heesen M, et al. Perioperative intravenous ketamine for acute postoperative pain in adults. Cochrane Database Syst Rev. 2018;2018(12). 30570761. Accessed April 19, 2022.
  17. Weibel S, Jelting Y, Pace N, et al. Continuous intravenous perioperative lidocaine infusion for postoperative pain and recovery in adults (Review). Cochrane Database Syst Rev. Published online 2018. 29864216. Accessed April 19, 2022.
  18. Eroglu A, Erturk E, Apan A, et al. Regional anesthesia for postoperative pain control. Biomed Res Int. 2014;2014:2–3. doi:10.1155/2014/309606. Accessed April 19, 2022.
  19. Albrecht E, Chin KJ. Advances in regional anaesthesia and acute pain management: a narrative review. Anaesthesia. 2020;75(S1):e101–e110. 33426668. Accessed April 19, 2022.
  20. Park S, Kang CH, Hwang Y, et al. Risk factors for postoperative anxiety and depression after surgical treatment for lung cancer. Eur J Cardio-thoracic Surg. 2016;49:e16–e21. 26410631. Accessed April 19, 2022.
  21. Pinto E, Cavallin F, Scarpa M. Psychological support of esophageal cancer patient? J Thorac Dis. 2019;11(Suppl 5):S654–S662. 31080642. Accessed April 19, 2022.
  22. Kim MS, Kim SY, Kim JH, et al. Depression in breast cancer patients who have undergone mastectomy: a national cohort study. PLoS One. 2017;12:1–11. 28394909. Accessed April 19, 2022.