Lesões dos nervos periféricos no pós-parto – Qual é o papel da anestesia?

Emery H. McCrory, MD; Jennifer M. Banayan, MD; Paloma Toledo, MD, MPH

Paciente dando à luzLesões dos nervos periféricos no pós-parto ocorrem em aproximadamente 0,3 a 2% de todos os partos. A maioria das lesões nervosas é atribuída a paralisias obstétricas intrínsecas causadas por compressão ou estiramento do nervo durante o parto. No entanto, existe a possibilidade de que a anestesia/analgesia neuroaxial contribua para a lesão. É importante que os anestesiologistas criem sistemas para identificar mulheres que sofreram lesões nervosas das extremidades inferiores no pós-parto e ofereçam recursos às pacientes.

O parto é o motivo mais comum de internação nos Estados Unidos.1 Embora complicações neurológicas durante a gravidez e o parto ainda sejam, felizmente, um evento relativamente raro, elas podem ter um expressivo impacto quando ocorrem. Lesões nervosas durante o parto são tradicionalmente atribuídas a paralisias obstétricas intrínsecas, seja por compressão ou estiramento do nervo. Embora isso ainda seja válido na maioria dos casos, procedimentos neuroaxiais podem contribuir para uma pequena proporção dessas lesões. Devido à raridade dessas lesões, não existem modelos precisos de previsão de risco. Portanto, os anestesiologistas devem trabalhar com obstetras e enfermeiros para desenvolver sistemas que identifiquem mulheres que desenvolvem lesões nervosas das extremidades inferiores no pós-parto e para fornecer a essas pacientes recursos relacionados à sintomatologia e à segurança da mobilidade, especialmente se houver um componente motor na lesão.

Lesões comuns dos nervos periféricos

A incidência de lesões dos nervos periféricos no pós-parto varia na literatura de 0,3 a 2% de todos os partos.2-4 Em um estudo com mais de 6.000 parturientes, as lesões dos nervos periféricos mais comuns encontradas no pós-parto foram no nervo cutâneo femoral lateral e no nervo femoral. Lesões mais raras afetam os nervos fibular comum, plexo lombossacral, ciático, obturador e radicular (tabela 1).4

Tabela 1. Lesões nervosas periféricas comuns no pós-parto e mecanismos de lesão propostos

Nervo Déficit observado Mecanismo proposto, local da lesão e fatores de risco
Nervo cutâneo femoral lateral Sensorial: sensibilidade diminuída na região anterolateral da coxa, “meralgia parestésica” Compressão sob o ligamento inguinal com flexão prolongada do quadril, obesidade (secundário ao aumento da pressão no ligamento inguinal)
Nervo femoral Sensorial: sensibilidade diminuída na parte anterior da coxa e panturrilha medial
Motor: flexão fraca da coxa (se houver envolvimento do nervo ilíaco), extensão fraca do joelho
Compressão sob o ligamento inguinal causada por flexão prolongada do quadril, abdução e rotação externa; retração durante o parto cesáreo; possivelmente diminuição do fluxo perineural para o nervo ilíaco
Plexo lombossacral e nervo ciático Sensorial: sensibilidade diminuída na parte posterior da coxa
Motora: quadríceps fraco, adução fraca do quadril, pé caído, vários níveis envolvidos
Compressão devido à posição fetal, compressão contra a borda pélvica, parto vaginal assistido por fórceps
Nervo obturador Sensorial: sensibilidade diminuída na coxa medial
Motora: adução fraca do quadril, marcha ampla
Compressão devido à posição fetal, posicionamento impróprio, parto vaginal assistido por fórceps
Nervo fibular comum Sensorial: sensibilidade diminuída na lateral da panturrilha
Motora: pé caído
Posicionamento da extremidade inferior, compressão na cabeça da fíbula com a mão ou estribos enquanto sob anestesia, compressão ao empurrar
Figura 1. Ilustração do nervo femoral passando abaixo do ligamento inguinal e do nervo ilíaco se ramificando mais proximal ao ligamento inguinal.

Figura 1. Ilustração do nervo femoral passando abaixo do ligamento inguinal e do nervo ilíaco se ramificando mais proximal ao ligamento inguinal.

A lesão do nervo cutâneo femoral lateral ocorre em aproximadamente quatro em cada 1.000 parturientes.4 O nervo, que fornece sensação à face anterolateral da coxa, passa sob o ligamento inguinal, o que o torna suscetível à compressão na posição litotômica. Essa disfunção puramente sensorial, também conhecida como meralgia parestésica, é tipicamente autolimitada com um curto período de recuperação e muitas vezes pode ser tratada com anti-inflamatórios não esteroides ou adesivos de lidocaína.5

A lesão do nervo femoral é ligeiramente menos comum, mas o envolvimento causa fraqueza na flexão da coxa, extensão do joelho, perda do reflexo patelar e perda sensorial na região medial da coxa e da panturrilha. O nervo femoral também passa por baixo do ligamento inguinal (figura 1) e, tradicionalmente, acredita-se que a compressão nesse ponto seja o mecanismo da lesão.

Fatores de risco

Foram identificados variados fatores de risco que contribuem para lesões dos nervos periféricos. Alguns deles, como duração do trabalho de parto e tipo de parto, não são modificáveis. O risco atribuível de qualquer fator de risco individual para o desenvolvimento de lesões nervosas não é conhecido. Nesta seção, discutiremos vários dos fatores de risco conhecidos.

A probabilidade de lesão nervosa é maior entre parturientes nulíparas e que passam mais tempo no segundo estágio do trabalho de parto na posição litotômica.4 Pacientes com parto vaginal assistido (com fórceps ou dispositivo a vácuo) também têm maior probabilidade de sofrer lesão dos nervos periféricos no pós-parto.4 Pacientes com cateteres neuroaxiais geralmente têm menos mobilidade e mantêm a mesma posição por períodos mais longos, o que pode tornar a lesão por compressão mais provável. Variações anatômicas no espaço epidural podem causar uma alta concentração de anestésico local ao redor de raízes nervosas individuais (detectada como a distribuição desigual de um bloqueio), que pode ser neurotóxico em uma dose alta o suficiente.6 Além disso, uma baixa concentração de anestésico local através do cateter peridural deve ser considerada. Embora isso não tenha sido estudado explicitamente, é razoável supor que pacientes com um bloqueio analgésico denso podem ter maior probabilidade de lesões nervosas compressivas, pois o anestésico local pode inibir os sinais de alerta nociceptivos de dor neuropática.

Um amplo estudo retrospectivo que avaliou 20.000 parturientes em trabalho de parto que receberam anestesia neuroaxial identificou uma incidência de lesão do nervo de 0,96%, com incidência maior de lesões do plexo lombossacral.7 Os fatores de risco identificados incluíram partos vaginais assistidos por fórceps, peso do recém-nascido > 3,5 kg, idade gestacional tardia (≥ 41 semanas) e início tardio do procedimento neuroaxial.7 Não foram encontradas diferenças significativas ao se observar a hora de colocação do bloqueio neuroaxial ou o nível de treinamento do profissional. Das 19 lesões identificadas, quatro foram atribuídas a trauma direto da agulha Touhy ou do cateter na raiz do nervo, com base em eletromiografia, ressonância magnética ou tomografia computadorizada nas 48 horas após o parto. Dessas quatro lesões, três das pacientes apresentaram parestesia durante a colocação no mesmo nível.7 Além disso, em três das quatro pacientes, o procedimento neuroaxial foi realizado com uma dilatação cervical maior que 5 centímetros, e todas as quatro pacientes tiveram uma difícil colocação do bloqueio neuroaxial documentada com dor intensa ou várias tentativas.7 Devido a essa significância, é especialmente importante incluir a lesão nervosa no consentimento anestésico para procedimentos neuroaxiais e proporcionar orientação apropriada às pacientes caso ocorra uma colocação traumática. É necessário realizar uma avaliação adicional quando ocorre parestesia durante a colocação do bloqueio neuroaxial, pois esse estudo limitado indicou que essas pacientes podem ter maior risco de neuralgia pós-parto. Nossa prática institucional é a seguinte: se uma paciente se queixar de parestesia transitória com a agulha raquidiana ou epidural que se resolver sem intervenção adicional, a injeção poderá prosseguir. Se a paciente apresentar parestesia persistente, a agulha será afastada da direção da parestesia. Se a parestesia ocorrer com a injeção espinhal de anestésico local, a injeção será interrompida e o espaço intratecal será reidentificado antes da injeção local. Finalmente, se a paciente tiver parestesia persistente quando o cateter peridural for inserido, normalmente o cateter será removido. Nesse caso, pode-se infundir solução salina antes de uma nova tentativa de inserção do cateter para ajudar a expandir o espaço epidural ou a agulha Touhy pode ser direcionada para longe da direção da parestesia e o espaço epidural localizado novamente.

Em um estudo observacional prospectivo de novas lesões nervosas dos membros inferiores pós-parto, houve algumas lesões que não se encaixaram no mecanismo clássico de compressão ou alongamento do nervo.4 Vinte e quatro pacientes tiveram lesões do nervo cutâneo femoral lateral, que se acredita terem sido causadas por compressão sob o ligamento inguinal na posição litotômica, sendo que quatro dessas pacientes tinham uma cesariana agendada. Além disso, todas as 22 lesões do nervo femoral apresentavam fraqueza do músculo iliopsoas, que é anatomicamente mais cranial do que o ligamento inguinal, sustentando a teoria de que a hipoperfusão do nervo pode contribuir para lesões nervosas no pós-parto.4,8 Estudos adicionais são necessários para elucidar o papel do controle da pressão arterial nas lesões nervosas e entender se o tratamento da pressão arterial pode prevenir ou mitigar certas lesões nervosas. Nosso grupo está atualmente investigando fatores de risco para novas lesões nervosas de membros inferiores no pós-parto em um estudo financiado pela Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ). O estudo avaliará a contribuição dos fatores de risco relacionados à paciente, bem como fatores obstétricos, neonatais e anestésicos. Esperamos aprofundar nossa compreensão dessas lesões nervosas e identificar fatores potencialmente modificáveis.

Nosso papel como anestesiologistas

Os anestesiologistas, em colaboração com a obstetrícia, desempenham um papel importante na identificação de lesões nervosas e no oferecimento de recursos às pacientes para o tratamento dessas lesões. Uma consideração importante após uma lesão nervosa é que as pacientes correm um risco significativo de queda. Se houver disfunção motora significativa, como observada em neuropatias femorais e lesões do plexo lombossacral, as pacientes devem ser avaliadas e orientadas cuidadosamente antes da alta. Felizmente, o prognóstico da lesão nervosa durante o trabalho de parto é favorável, pois a recuperação geralmente ocorre em semanas.2 Um estudo feito mostrou que a duração mediana dos sintomas foi de dois meses.4 Em outro estudo prospectivo, o tempo médio de recuperação da lesão nervosa foi de 18 dias, mas três mulheres continuaram a ter déficit neurológico após um ano.9

Os anestesiologistas devem trabalhar com os obstetras e os enfermeiros de sua instituição para garantir que todas as pacientes sejam avaliadas após o parto e questionadas sobre sintomas consistentes com lesões nervosas das extremidades inferiores no pós-parto. Se a avaliação pós-anestésica ocorrer imediatamente após o parto, os efeitos residuais do bloqueio neuroaxial poderão mascarar qualquer nova lesão nervosa da extremidade inferior. O ideal é que, no primeiro dia do pós-parto, os anestesistas, obstetras ou enfermeiros de pós-parto perguntem às pacientes: você está tendo alguma dificuldade para andar ou tem alguma nova dormência ou fraqueza nas pernas? Pacientes que confirmarem um novo déficit sensorial ou fraqueza devem passar por uma avaliação mais completa pela equipe de anestesia (se a paciente tiver recebido anestésico neuroaxial) ou por um fisiatra ou fisioterapeuta, caso o parto tenha ocorrido sem anestésico. Se o padrão da lesão não estiver claro, poderá se indicar uma consulta de neurologia, pois a eletromiografia pode ajudar a revelar a disfunção individual de nervos e músculos.10 É extremamente importante que pacientes com qualquer fraqueza sejam avaliadas para garantir uma deambulação segura, porque a nova mãe poderá se machucar ou machucar a criança se não conseguir suportar peso devido à lesão nervosa. Uma avaliação fisioterapêutica identificará se algum dispositivo auxiliar, como joelheira, sapato ortopédico ou andador, é necessário antes de deixar o hospital. Embora normalmente nenhum tratamento médico seja necessário para novas lesões nervosas nas extremidades inferiores, gabapentina pode ser considerada se a paciente reclamar de dor neuropática. Não houve muitos estudos nessa população de pacientes, mas a gabapentina não demonstrou ter efeito no recém-nascido por meio da exposição ao leite materno.11 O risco mais significativo é que a gabapentina tenha um amplo perfil de efeitos colaterais, incluindo aumento de fadiga, o que pode ser indesejável. Por último, o apoio emocional é fundamental, pois uma lesão debilitante pode exacerbar ainda mais qualquer depressão ou ansiedade pós-parto. Portanto, é vital que a paciente tenha um acompanhamento rigoroso com o obstetra após o parto. Normalmente, o acompanhamento com um neurologista ou fisiatra e fisioterapeuta não é necessário, desde que os sintomas continuem a desaparecer e não piorem.

Resumo

Lesões nervosas no pós-parto são muito raras, mas podem ser muito preocupantes para a paciente e para o anestesista. A maioria das lesões nervosas é atribuída a paralisias obstétricas intrínsecas causadas por compressão ou estiramento do nervo durante o parto. No entanto, é importante estar ciente de nosso papel no que se refere à hipoperfusão de nervos, colocação traumática do bloqueio neuroaxial e diminuição da função motora durante o trabalho de parto devido a anestésico local denso. Estudos adicionais são necessários para ajudar a entender quais fatores aumentam o risco dessas lesões entre as pacientes. Os anestesiologistas podem tem um impacto direto na segurança, informando outros profissionais perinatais e garantindo que todas as pacientes, independentemente de receberem ou não um procedimento neuroaxial, sejam avaliadas por um profissional quanto a novas lesões nervosas no pós-parto. Se uma lesão nervosa for detectada, será necessário identificar o nervo afetado e descrever a lesão (motora, sensorial ou mista) no prontuário médico. A paciente também deve ser avaliada pela equipe de fisioterapia ou fisiatria para garantir que é seguro deambular com a criança antes da alta hospitalar.

 

Emery McCrory, MD, é professora assistente de Anestesiologia na Northwestern University Feinberg School of Medicine, Chicago, Illinois, EUA.

Jennifer Banayan, MD, é editora do Boletim da APSF e professora associada de Anestesiologia na Northwestern University Feinberg School of Medicine, Chicago, Illinois, EUA.

Paloma Toledo, MD, MPH é professora assistente de Anestesiologia na Northwestern University Feinberg School of Medicine, Chicago, Illinois, EUA.


Ermery McCrory, MD, e Jennifer Banayan, MD, não apresentam conflitos de interesse. Paloma Toledo, MD, recebe bolsas da Agency for Healthcare Research and Quality e do National Institute on Minority Health and Health Disparities (R03MD011628, R03HS025267, R18HS026169). O conteúdo é de responsabilidade exclusiva das autoras e não representa necessariamente a opinião oficial da Agency for Healthcare Research and Quality ou do National Institute on Minority Health and Health Disparities.


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