CULTURA DE SEGURANÇA: a relação multidisciplinar do profissional de anestesia

Katherine A. Meese, PhD; D. Matthew Sherrer, MD, FASA

INTRODUÇÃO

Profissionais de saúdeUm artigo recente publicado na APSF por Jeffrey Cooper, PhD, destacou a importância de considerar a relação entre certas díades na sala de cirurgia, especificamente entre anestesiologistas e cirurgiões.1 O artigo discutiu tanto as implicações para a segurança do paciente como o potencial de danos quando há a degradação das relações dessa díade. No entanto, sugerimos que uma díade igualmente importante a se considerar é aquela entre os anestesiologistas. Pressões externas podem se infiltrar na sala de cirurgia e influenciar nossa experiência no local de atendimento. Portanto, é da maior importância criar um ambiente de trabalho satisfatório para todos os membros da equipe, para que o cuidado colaborativo possa se traduzir em aumento da segurança do paciente.

Otimizando nossas equipes

Há um crescente corpo de pesquisas que fornece orientações sobre como promover um melhor desempenho da equipe, o que pode levar ao atendimento aprimorado ao paciente.

Inteligência coletiva e trabalho em equipe

O desempenho da equipe está apenas moderadamente conectado à inteligência individual de seus membros.² Woolley et al. encontraram suporte empírico para um fator de inteligência coletiva (fator C) que explica o desempenho de um grupo. Especificamente, este fator C “não está fortemente correlacionado com a inteligência individual média ou máxima dos integrantes do grupo, mas com a sensibilidade social média deles, a igualdade na distribuição de turnos de conversação e a proporção de mulheres no grupo” (o que provavelmente também está relacionado à sensibilidade social).³ Equipes com integrantes que conseguem ser socialmente sensíveis, incentivam todos a participar das conversas e valorizam a contribuição de todos os membros podem funcionar melhor.

O ambiente da sala de cirurgia exige modos exclusivos de interação em equipe. Grande parte da pesquisa sobre equipes pressupõe uma associação estável entre os integrantes, o que lhes permite praticar e aprimorar o desempenho em grupo ao longo do tempo. No entanto, no contexto perioperatório, cada caso pode representar uma combinação única de médicos que trabalham juntos com frequências diferentes. Enquanto algumas equipes mantêm um conjunto estável de integrantes, outras têm uma mistura de anestesiologistas, cirurgiões e residentes que muda com frequência. Os pesquisadores se referiram a esse conceito como “formação de equipe”, que requer que profissionais relativamente desconhecidos uns dos outros formem rapidamente uma equipe para realizar tarefas desafiadoras com pouco ou nenhum tempo para praticar a colaboração. Edmonson descreve a formação de equipe como “trabalho em equipe em tempo real”, o que é apropriado para as situações no espaço perioperatório.⁴ Um componente crítico da formação de equipe é a segurança psicológica, ou seja, saber que a equipe é um lugar seguro para se assumir riscos interpessoais, caracterizado como um ambiente de confiança e respeito mútuo. No contexto perioperatório, assumir riscos pode incluir expressar publicamente uma preocupação com a segurança do paciente ou discordar de uma decisão de tratamento. Uma equipe bem-sucedida também exige humildade situacional, quando o integrante do grupo reconhece a dificuldade de uma tarefa e entende que não pode resolvê-la sem ajuda.⁴ A humildade situacional cria espaço para que todos os integrantes da equipe contribuam para a meta final. Diante da incerteza e da ambiguidade, ambas características centrais no atual ambiente de saúde, a humildade situacional promove um ambiente que incentiva as equipes a desenvolverem um comportamento de aprofundamento de aprendizagem. No entanto, se um integrante da equipe mantiver um estilo de liderança autoritário ou ditatorial, haverá o risco não apenas de que informações valiosas com potencial de aumentar a segurança do paciente sejam suprimidas, mas também da desvalorização de outros integrantes da equipe de atendimento.

O papel dos estereótipos

Ao lidar com uma pessoa desconhecida, muitas vezes procuramos pistas e estereótipos para tentar prever como essa pessoa se comportará. A estereotipagem é um mecanismo usado para reduzir uma incerteza percebida. Por exemplo, ao trabalhar com um cirurgião pela primeira vez, o anestesiologista pode lançar mão de estereótipos sobre cirurgiões ou outros especialistas específicos como forma de lidar com essa nova relação durante o caso. Se esses estereótipos ou suposições estiverem incorretos, eles poderão levar a erros de comunicação e ameaças à segurança do paciente. Enfermeiros, médicos e outros integrantes da equipe de atendimento que já se conhecem no ambiente hospitalar podem ter construído relações de trabalho de confiança. No entanto, quando as pessoas nessas funções são desconhecidas umas das outras (o que é comum em grandes organizações), estereótipos imprecisos podem ser significativamente prejudiciais. Pressões externas, lutas de poder intraorganizacionais e confrontos profissionais têm o potencial de sobrecarregar os integrantes da equipe de atendimento com estereótipos negativos, independentemente das características do indivíduo. Esses estereótipos podem criar um ambiente de desconfiança e ameaça antes do início do caso. Quando uma ameaça à segurança é percebida, a autopreservação, e não a colaboração, pode se tornar a norma.

Ambiguidade de papeis

A evolução e as mudanças nos papéis dos profissionais de saúde trazem novas questões sobre quais funções cada integrante da equipe deve assumir.

A falta de clareza sobre como cada integrante da equipe pode contribuir melhor ou quais funções cada um deve exercer pode levar à ambiguidade de papéis.

A ambiguidade de papeis é a “falta de clareza sobre as responsabilidades de trabalho e o grau de autoridade de uma pessoa”.⁵ A ambiguidade de papeis é um fator determinante de estresse ocupacional e está associada a ansiedade, burnout, depressão, insatisfação no trabalho, insatisfação com a gerência e com colegas de trabalho, entre outros resultados negativos. ⁵ Altos níveis de burnout e estresse foram relatados tanto entre médicos⁶ como entre profissionais de prática avançada.⁷ Portanto, é fundamental que trabalhemos para reduzir fontes de inquietação, como a ambiguidade de papeis, e identificar os pontos fortes que cada profissional pode trazer para a equipe e para a beira do leito. Ao compreender quais configurações de equipe produzem os melhores resultados, estaremos mais bem posicionados para ajudar cada integrante a ver o valor único e a contribuição dos outros, reduzindo assim a ambiguidade de papéis e criando um ambiente de apreciação, respeito mútuo e segurança psicológica. Esforços devem ser feitos para identificar claramente quais funções cada profissional clínico deve exercer, a fim de reduzir o atrito em áreas de possível sobreposição e maximizar o desempenho da equipe. Um plano claro elaborado em grupo pode ajudar o médico, o profissional de prática avançada, enfermeiros e técnicos a entender como seus esforços contribuem para o desempenho da equipe.

O caminho a seguir

Administração de anestesia na sala de cirurgiaA pandemia da COVID-19 trouxe uma pressão incomparável à equipe perioperatória e revelou a natureza subjacente das relações entre os integrantes da equipe de atendimento. Sob estresse, a habilidade de disfarçar e esconder danos relacionais pode se tornar mais difícil. Equipes coesas e confiantes podem se esforçar mais, enquanto que aquelas sem essas características podem ter uma tendência a se dividir sob pressão. O que devemos fazer, tanto de imediato como ao fim da pandemia?

Primeiro, precisamos adotar o conceito de microempatia com colegas de equipe como rotina em nossas interações diárias. O conceito de microagressões no local de trabalho tem sido objeto de enfoque recente. Originado em estudos sobre discriminação racial, o conceito de microagressão tem sido aplicado de maneira mais ampla no ambiente de saúde.8 A premissa é que pequenos atos de desrespeito, insultos, agressão ou hostilidade podem ocorrer com frequência e têm a capacidade de degradar e desmoralizar os funcionários. Propomos a necessidade de institucionalizar a prática da microempatia ou pequenos e deliberados atos de consideração, atenção e respeito. Sugerimos que a microempatia pode se manifestar em pequenos atos de escuta e atenção que têm um importante efeito cumulativo ao longo do tempo, construindo capital relacional entre os integrantes da equipe. Assim como implementamos listas de verificação de segurança cirúrgica, precisamos implementar a microempatia em nossas operações de rotina. Enquanto é fundamental demonstrar empatia quando um membro da equipe passa por uma dificuldade óbvia, precisamos iniciar conversas frequentes que nos permitam demonstrar empatia em relação aos estresses cotidianos antes que eles gerem um efeito prejudicial acumulado. O modelo “Circle Up”9, baseado na interação de equipes esportivas, sugere que essa rotina seja implementada em encontros diários, fazendo perguntas como:

  • “Quais foram as reações ao dia de hoje?”
  • “O que ajudou a equipe a trabalhar bem em conjunto?”
  • “Como nosso trabalho poderia ser 1% melhor?”
  • “O que afetou você pessoalmente no turno de hoje?”

É provável que isso seja mais eficaz quando a equipe prioriza a construção de relacionamentos abertos e de confiança.

Além disso, precisamos garantir a formação de equipes desde o início das carreiras profissionais. Devemos treinar juntos. Em todo o país, residentes de diferentes disciplinas muitas vezes não treinam juntos. Uma educação intencionalmente colaborativa, que não se baseie apenas na arte e na ciência do cuidado em si, mas também na construção de um trabalho em equipe altamente confiável, pode proporcionar cuidados de saúde significativamente melhores.

Em conclusão, muitos anestesiologistas relatam ambientes de trabalho gratificantes e colaborativos, com respeito mútuo entre si. Um paciente merece o melhor atendimento, e sugerimos que isso ocorre quando todos os integrantes da equipe trabalham juntos em harmonia, usando seus diversos conjuntos de habilidades e conhecimentos e aplicando sua inteligência coletiva para criar equipes que resultam na prestação de atendimento da mais alta qualidade. Enquanto nos unimos contra o inimigo comum e formidável que é a doença, devemos cuidar uns dos outros. Só então alcançaremos a visão da APSF: “Que nenhum paciente deve ser prejudicado por cuidados anestésicos”.

 

Katherine A. Meese, PhD, MPH, é professora assistente do Departamento de Administração de Serviços de Saúde, diretora de pesquisa, UAB Medicine Office of Wellness, e diretora do programa de Certificação de Pós-Graduação em Liderança em Saúde da University of Alabama em Birmingham.

Matthew Sherrer, MD, MBA, FASA, é professor assistente do Departamento de Anestesiologia e Medicina Perioperatória da University of Alabama em Birmingham.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

  1. Cooper, JB. Healthy relationships between anesthesia professionals and surgeons are vital to patient safety. APSF Newsletter. 2020;35:8-9. https://www.apsf.org/article/healthy-relationships-between-anesthesia-professionals-and-surgeons-are-vital-to-patient-safety/. Accessed April 9, 2021.
  2. Mayo AT, Woolley AW. Teamwork in health care: maximizing collective intelligence via inclusive collaboration and open communication. AMA Journal of Ethics. 2016;18:933–940.
  3. Woolley A, F Chabris C, Pentland A, et al. Evidence of a collective intelligence factor in the performance of human groups. Science. 2010;330:686-688.
  4. Edmondson AC. Teaming: how organizations learn, innovate, and compete in the knowledge economy. John Wiley & Sons; 2012.
  5. Psychology Research and Reference. (2019). Role ambiguity. https://psychology.iresearchnet.com/industrial-organizational-psychology/job-satisfaction/role-ambiguity/. Accessed April 9, 2021.
  6. Meese KA, Borkowski NM. Do no harm, except unto thyself. Anesth Analg. 2017;125:1840–1842.
  7. Kapu AN, Card EB, Jackson H, et al. Assessing and addressing practitioner burnout: results from an advanced practice registered nurse health and well-being study. J Am Assoc Nurse Pract. 2019;33:38–48.
  8. Molina MF, Landry AI, Chary AN, Burnett-Bowie S. Addressing the elephant in the room: microaggressions in medicine. Ann Emerg Med. 2020;76:387–391
  9. Rock LK, Rudolph JW, Fey MK, et al. “Circle Up”: workflow adaptation and psychological support via briefing, debriefing, and peer support. NEJM Catalyst Innovations in Care Delivery. https://catalyst.nejm.org/doi/full/10.1056/CAT.20.0240. Accessed April 15, 2021.