Complicações perioperatórias são mais comuns em pacientes com SCD em comparação com a população geral, com um risco maior de ACS (Acute Chest Syndrome, Síndrome torácica aguda), infecções, crises de dores vaso-oclusivas e mortalidade em 30 dias. Crianças com SCD têm um perfil de risco perioperatório diferente dos adultos devido ao efeito cumulativo de RBCs falciformes na disfunção do órgão final. Embora as evidências atuais sejam a favor de transfusão pré-operatória em crianças com SCD, isso é de baixa qualidade e baseado em cirurgia de risco baixo a moderado, pois o plano de transfusões pré-operatórias deve ser específico para o paciente e considerar o genótipo da SCD, a hemoglobina da avaliação inicial, a gravidade da doença, a classificação de risco da cirurgia e o histórico de complicações cirúrgicas anteriores.
Há um foco contínuo na administração de cuidados seguros e de alta qualidade para os pacientes na anestesiologia. A otimização do paciente antes do recebimento do anestésico é vital para garantir o tratamento ideal do paciente. A otimização do paciente pediátrico com SCD (Sickle Cell Disease, anemia falciforme) é uma área de interesse contínuo dada a sua incidência e as suas implicações perioperatórias da doença. Crianças com SCD têm um perfil de risco perioperatório diferente dos adultos devido ao efeito cumulativo de RBCs falciformes na disfunção do órgão final.
A SCD é um defeito hematológico comum, com uma substituição de valina por ácido glutâmico na cadeia beta de hemoglobina, que ocorre em cerca de 365 nascimentos de afro-americanos. Nos Estados Unidos, aproximadamente 70 mil a 100 mil pessoas têm SCD, com 2,6% de indivíduos de origem mediterrânea, asiática e africana afetados.1 Os pacientes podem ser homozigóticos (HbSS), heterozigóticos (HbSC) ou ter uma talassemia associada (Hb-S-beta0 ou Hb-S-beta+). As manifestações clínicas mais graves ocorrem em pacientes com HbSS e Hb-S-beta0. Os RBC (red blood cells, glóbulos vermelhos) nesses pacientes, quando desoxigenados, passam por polimerização, levando à deformidade no RBC (ou seja, formação falciforme), posterior hemólise e vaso-oclusão.2 Esse dano aos RBCs, precipitado por hipoxemia, hipotermia, hipovolemia, infecção, dor, estresse e cirurgia, pode inibir o fluxo sanguíneo e causar lesão isquêmica, produzindo os sintomas de uma crise de anemia falciforme, como crise de dor, síndrome torácica aguda, danos crônicos a um órgão e complicações musculoesqueléticas.
Cirurgia e anestesia geral impõem desafios na manutenção da hemostasia para reduzir os gatilhos fisiológicos que podem precipitar uma crise de anemia falciforme. Crianças com SCD têm risco maior das seguintes complicações pós-operatórias, com incidência de uma ACS (Acute Chest Syndrome, síndrome torácica aguda) de 3,08%, acidente vascular cerebral de 0,2%, e mortalidade em 30 dias de 0,2%.3 Hidratação intravenosa, termorregulação e oxigenação adequada fazem parte do controle perioperatório, com o objetivo de evitar crises de anemia falciforme.4,5 Como com muitas circunstâncias, o julgamento clínico da equipe perioperatória na determinação do risco em comparação ao benefício de uma transfusão perioperatória em um paciente com SCD é vital.
Os procedimentos pediátricos mais comuns são de risco baixo a moderado (por exemplo, inserção de tubo para equalização da pressão, colecistectomia laparoscópica, amidalectomia/adenoidectomia, esplenectomia laparoscópica, reparo de hérnia umbilical, apendicectomia laparoscópica e tubos de miringotomia) se comparados com adultos, que podem passar por procedimentos cirúrgicos de mais alto risco (por exemplo, cirurgia cardíaca e revascularização cerebral).4- 10 Além disso, limitar transfusões desnecessárias de sangue em crianças é uma consideração significativa para evitar aloimunização, sobrecarga de volume e imunossupressão.11-13 A incidência de aloimunização em SCD varia de 7% a 58%, dependendo da idade, do número de transfusões anteriores e do uso de células fenotípicas correspondentes. Crianças com um histórico de vários aloanticorpos, reação hemolítica retardada e/ou hemólise, têm um risco maior de resultados adversos relacionados à transfusão e, portanto, deve se considerar com cuidado qualquer transfusão.14,15
Ainda há controvérsia sobre a estratégia adequada de transfusão perioperatória em pacientes com SCD
A decisão de administrar uma transfusão de sangue perioperatória faz parte da estratégia de otimização para pacientes com SCD adotada pelos hematologistas e profissionais de anestesia para reduzir a porcentagem de RBCs falciformes. A esperança é potencialmente reduzir o risco de complicações perioperatórias, em especial em pacientes com SCD de alto risco. No entanto, a literatura referente a esse tópico mostrou resultados ambíguos.5 Embora as diretrizes de 2020 da American Society of Hematology sugiram uma transfusão perioperatória para um nível de hemoglobina de 9 ou de 10 g/dl em todos os pacientes com SCD que passam por cirurgias que precisam de anestesia geral com duração superior a uma hora, ainda há controvérsia sobre a estratégia de transfusão perioperatória adequada, dadas as evidências atuais.6
Há estudos limitados com crianças sobre transfusões perioperatórias em crianças com SCD. Por exemplo, Alternativas à transfusão em anemia falciforme, foi um estudo controlado randomizado comparando a incidência de complicações perioperatórias em pacientes que receberam ou não receberam uma transfusão perioperatória. O estudo, que incluiu adultos e crianças, relatou uma incidência menor de complicações perioperatórias em pacientes que fizeram transfusão perioperatória em comparação aos que não fizeram.7 O grupo de transfusão foi 1) uma transfusão simples para aumentar a transfusão de Hgb (hemoglobina) para 10 g/dl nos pacientes com hemoglobina menor que 9 g/dl ou 2) uma transfusão de troca parcial para reduzir a porcentagem de Hgb S (Sickle Cell Hemoglobin, hemoglobina falciforme) para menos de 60% nos pacientes com uma Hgb maior que 9 g/dl. Os pacientes que receberam uma transfusão perioperatória tiveram risco mais baixo de síndrome torácica aguda e de complicações com risco à vida (p = 0,023). Não houve diferença na crise de dor pós-operatória, no tempo de internação ou nas taxas de reinternação. Esse estudo foi pequeno (n = 67) e heterogêneo, 40 crianças e 27 adultos, dificultando quantificar o benefício da transfusão perioperatória em crianças com SCD.
Embora o estudo acima tenha tido como objetivo transfusões simples em relação a transfusões de troca parciais, outro estudo multicêntrico randomizado avaliou os resultados em pacientes com SCD depois de uma transfusão simples em relação a uma transfusão de troca.5 Os participantes desse estudo foram randomizados no pré-operatório para receber um regime de transfusão de troca para reduzir o nível de Hgb S para menos de 30% ou um regime com uma transfusão simples para aumentar o nível de Hb para 10 g/dl. Colecistectomia, cirurgia de cabeça e pescoço e cirurgia ortopédica foram os procedimentos mais comuns no estudo, com as crianças compondo mais de 90% (n = 502) da coorte. Complicações relacionadas à transfusão ocorreram em 14% do grupo de transfusão de troca e 7% no grupo de transfusão simples. A incidência de síndrome torácica aguda foi de 10% nos dois grupos.5 Uma transfusão simples foi tão eficaz quando a transfusão de troca para evitar complicações perioperatórias em pacientes com SCD.
As observações relatadas pelos estudos acima, no entanto, diferiram de um estudo que avaliou os dados dos resultados relacionados a SCD e transfusões de sangue do banco de dados do NSQIP (National Surgical Quality Improvement Program, Programa nacional de .melhoria da qualidade cirúrgica) da American College of Surgeons. Nesse estudo, uma coorte retrospectiva de 357 crianças com SCD, passando por cirurgia de risco baixo a moderado (colecistectomia laparoscópica, esplenectomia ou apendicectomia) sugeriu que não há diferença nas taxas de reinternação em 30 dias, infecções no local da cirurgia, deiscência da ferida, pneumonia, reintubação não planejada, tromboembolia venosa, infecção do trato urinário, transfusão pós-operatória, parada cardíaca, acidente vascular cerebral, sepse e morte em crianças que não fizeram transfusão (p = 0,80).8 A taxa de complicações cirúrgicas em 30 dias não diferiu entre os grupos (p = 0,84). Análise adicional de subgrupos, definida por hematócrito pré-operatório maior que 27,3% ou menor que 27,3%, não mostrou nenhuma diferença na crise de anemia falciforme pós-operatória nas crianças que fizeram transfusão em relação às que não fizeram. A transfusão pré-operatória, além disso, não foi associada a uma taxa reduzida de transfusões pós-operatórias nessa coorte.
A transfusão de sangue pré-operatória de rotina em crianças com SCD não é recomendada
Assim, a evidência atual corroborando a transfusão pré-operatória de rotina em crianças com SCD é inconsistente e inconclusiva e não favorece a transfusão de sangue de rotina. Assim, a decisão de uma transfusão pré-operatória deve ser específica do paciente, considerando o genótipo da SCD, a hemoglobina da avaliação inicial, a gravidade da doença, a classificação de risco da cirurgia e o histórico de complicações cirúrgicas anteriores. Uma equipe interdisciplinar, consistindo em anestesiologia, hematologia e cirurgia, é importante para o controle perioperatório. Uma análise pré-operatória inicial deve precede qualquer decisão de fazer transfusão pré-operatória (Tabela 1). A decisão pela transfusão depende da categorização de risco, baseada na gravidade da SCD e no tipo de cirurgia (Tabela 2).4-6 Um plano recomendado possível baseado nessas considerações é mostrado na Tabela 3 e na Tabela 4 para SCD de baixo risco e SCD de alto risco, respectivamente.7,9
Tabela 1: Avaliação pré-operatória da criança com SCD.16,17
Tabela 2: Estratificação de risco com base na gravidade da doença e no tipo de cirurgia.16,17
Tabela 3: Plano para SCD de baixo risco.16,17
Tabela 4: Plano para SCD de alto risco16,17
Em resumo, a decisão de fazer transfusão em crianças com SCD no período perioperatório deve ser guiada pela gravidade da doença e pela categoria da cirurgia. Pacientes que podem se beneficiar da transfusão são aqueles com alto risco de descompensação, e incluem os que estão passando por um procedimento de alto risco ou que têm, na avaliação inicial, um estado de doença de alto risco. Pesquisa futura deve se concentrar na criação de diretrizes e protocolos para guiar os médicos na busca por garantir tratamento seguro e de qualidade para esses pacientes de alto risco.
Rahul Baijal, MD, é professor adjunto do Departamento pediátrico de anestesiologia, medicina perioperatória e da dor da Faculdade de Medicina de Baylor, no Texas Children’s Hospital, em Houston, Texas.
Priti Dalal, MD, é professor no Departamento de anestesiologia, Penn State Health & Penn State Children’s Hospital, Hershey, PA
Megha Kanjia, MD, é professor adjunto do Departamento pediátrico de anestesiologia, medicina perioperatória e da dor da Faculdade de Medicina de Baylor, no Texas Children’s Hospital, em Houston, Texas.
Os autores não apresentam conflitos de interesse.
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