A nossa própria segurança

Jeffrey Huang, MD; Anthony Brenner, BS
Summary: 

Para que ocorra o suicídio entre médicos, diversos fatores de estresse precisam estar presentes e pesar na mente da pessoa até que o fardo se torne insuportável. Para que possamos vislumbrar um horizonte mais esperançoso no que diz respeito ao suicídio entre profissional da medicina, melhorias reais na prevenção e na utilização de tratamento devem ser feitas.

Nos Estados Unidos, a cada dia um médico comete suicídio, o que equivale à perda de aproximadamente duas turmas de formandos em medicina ao ano.1 A taxa de médicos do sexo masculino que tiram a própria vida é um pouco mais alta do que a de homens com outras profissões, mas a taxa de médicas do sexo feminino é mais que o dobro da de mulheres com outras profissões.2 Embora o suicídio entre médicos tenha se tornado assustadoramente comum, os relatos dessas tragédias são descritos como “inesperados” ou “chocantes”. Vejamos um caso recente na Flórida, de um anestesiologista sênior que tirou a própria vida. Conforme a notícia se espalhou pelos corredores do hospital, uma comunidade inteira de assistência à saúde ficou incrédula. Quando a taxa de suicídio é analisada por especialidade, os anestesiologistas só ficam atrás de cirurgiões, de acordo com dados coletados entre 2012 e 2018.3 No entanto, ao corrigir o número para médicos atuantes por especialidade, os anestesiologistas são duas vezes mais propensos a cometer suicídio do que outros tipos de médicos.3 Está na hora de todos os anestesiologistas cuidarem da própria segurança com o mesmo envolvimento que dedicamos à segurança de nossos pacientes.

Depression (depressão)

O suicídio de profissionais da medicina ocorre na presença de fatores de risco não endereçados ou quando vários fatores de risco estão presentes. Assim como na população geral, transtornos de humor e abuso de substâncias são os principais fatores de risco entre médicos que cometem suicídio.4 Por exemplo, um relatório psicológico post mortem em um pequeno grupo de médicos que cometeram suicídio identificou que dois terços sofriam de depressão ou abuso de álcool.5 O risco de depressão permeia todas as etapas da carreira na medicina, inclusive a faculdade e a residência. Na verdade, os estudantes e residentes de medicina apresentam maior risco de ter um episódio de depressão do que médicos mais avançados na carreira.6,7 Entre anestesiologistas residentes nos Estados Unidos, um estudo identificou que 298 de 1.384 (21%) apresentam risco de depressão, e, entre esses, 23% relataram ter pensamentos suicidas, pelo menos em algum momento.8 Não está claro se esses dados se estendem aos estágios mais avançados da carreira em anestesia, já que há poucos estudos sobre depressão e pensamentos suicidas na especialidade como um todo. Além disso, não fica claro se o risco para Certified Registered Nurse Anesthetists e Anesthesiologist Assistants é elevado, devido à escassez de estudos sobre depressão e risco de suicídio entre profissionais de anestesia que não são médicos. Ainda assim, é provável que todos os profissionais de anestesia possam ser afetados por esse problema generalizado.

Abuso de substâncias

Em contrapartida, o risco elevado de abuso de substâncias foi documentado de forma tão extensa em anestesiologia que alguns o consideram um risco ocupacional. De modo geral, o abuso de substâncias torna o suicídio mais provável, e aparece como um fator de risco em um método de triagem comum para identificar pacientes com risco de suicídio (Tabela 1).9 Um fator relevante que aumenta o risco de abuso de substâncias entre anestesiologistas é a facilidade de acesso a medicamentos viciantes.10 As políticas de manuseio de medicamentos, como sistemas eletrônicos de dispensa, fiscalização de seringas descartadas e cofres, foram empregadas para combater o desvio desses medicamentos para abuso. Apesar desses esforços, a incidência conhecida de abuso de substâncias permanece em cerca de 1,6% de residentes em anestesiologia e 1% de universitários.10,11 O esforço para reduzir a incidência de abuso de substâncias é crucial para reduzir o ônus dos suicídios no campo da anestesiologia. Embora as regulamentações possam frustrar as tentativas de obter substâncias que causam dependência, outros fatores como estresse no trabalho, alta carga horária e burnout profissional também podem influenciar a relação entre anestesiologistas e abuso de substâncias.

Tabela 1. “SAD PERSONS”9

Acróstico em inglês sobre fatores de risco de suicídio
S Sex: male (sexo masculino)
A Age >60 (mais de 60 anos)
D Depression (depressão)
P Previous attempt (tentativa anterior de suicídio)
E Ethanol/drug abuse (abuso de álcool ou drogas)
R Rational thinking loss (perda do raciocínio lógico)
S Suicide in family (suicídio na família)
O Organized plans (planos organizados)
N No support (sem apoio)
S Sickness; debilitating disease (doença incapacitante)

Burnout

O burnout, esgotamento, é um estado mental de fadiga e senso reduzido de realização pessoal. Os fatores que levam a seu desenvolvimento tornaram-se um assunto de intenso debate na discussão sobre a saúde mental de médicos.12 Este ano, o Relatório Nacional de Depressão e Burnout em Médicos da Medscape constatou que 42% dos 15.543 médicos relataram burnout.13 As áreas de medicina intensiva e neurologia relataram a maior prevalência (48%), enquanto a prevalência mais baixa foi apresentada nas áreas de cirurgia plástica, dermatologia e patologia (32%). A prevalência de burnout na anestesiologia foi de 38% (os anestesiologistas representaram 6% de todos os respondentes). O mesmo relatório da Medscape verificou que 14% dos participantes relatam tanto depressão quanto burnout. Embora o burnout não necessariamente preceda a depressão, pode haver uma relação, considerando as semelhanças dos sintomas. Os praticantes de medicina no início da carreira sempre relatam as taxas de burnout mais altas, e o campo da anestesiologia não é diferente. Entre os residentes em anestesiologia, o burnout foi associado ao desvio das boas práticas em anestesiologia, sugerindo que esse esgotamento pode prejudicar os pacientes na forma de taxas mais altas de erro médico.8 Além disso, os residentes com alto risco de depressão ou burnout demonstraram um consumo de álcool semanal mais alto e estavam mais propensos a abusar do tabaco do que os residentes que não relataram burnout ou depressão.8 Considerando o histórico dos anestesiologistas com abuso de substâncias, tal ligação deve alertar os líderes de anestesiologia e garantir pesquisas mais detalhadas sobre o burnout e seu papel no abuso de substâncias.

Prevenção

Para obter melhorias significativas na redução das taxas de suicídio entre médicos, é preciso realizar intervenções que focam o problema em vários níveis. Os esforços para instruir os médicos sobre os sinais de alerta e os fatores de risco devem ser aprimorados, e é preciso disponibilizar prontamente recursos adequados para que os médicos que estejam sofrendo (ou seus colegas) obtenham meios de conseguir ajuda quando mais precisam. A American Society of Anesthesiologists (ASA) realizou várias ações vitais após tomar conhecimento de que os anestesiologistas são o grupo de médicos com maior propensão ao suicídio. A aba de recursos no site da ASA inclui uma seção sobre recursos de prevenção ao suicídio com acesso direto a linhas de apoio para os que precisam de atendimento urgente, bem como para informações sobre sinais, prevenção e conhecimento sobre o suicídio entre médicos (Tabela 2). Deve-se enfatizar que esses recursos também ajudarão um médico que vir um colega em sofrimento, mas não souber como ajudar. A ASA também formou um Comitê Ad Hoc sobre o Bem-Estar do Médico para criar formas de melhorar o órgão como um recurso para anestesiologistas que estão sofrendo com depressão, abuso de substâncias e suicídio. Além disso, um painel dedicado ao debate sobre prevenção do suicídio entre anestesiologistas foi adicionado à Reunião anual da ASA de 2018.

Tabela 2. Recursos para os profissionais da saúde

Linhas de apoio
National Suicide Prevention Lifeline (EUA) suicidepreventionlifeline.org
1-800-273-TALK (8255)
Envie “HOME” para 741741
Prevenção do suicídio
NIH – National Institute of Mental Health: Prevenção do suicídio nimh.nih.gov/health/topics/suicide-prevention/index.shtml
Fundação Americana para Prevenção do Suicídio afsp.org/our-work/education/healthcare-professional-burnout-depression-suicide-prevention/
AMA Steps Forward stepsforward.org/modules/preventing-physician-suicide
Recursos de prevenção do suicídio da ASA asahq.org/in-the-spotlight/suicide-prevention-resources
Para bem-estar
Saúde e bem-estar na American Association of Nurse Anesthetists (AANA) aana.com/practice/health-and-wellness-peer-assistance
Iniciativa de bem-estar da ACGME acgme.org/what-we-do/initiatives/physician-well-being
Agency for Healthcare Research and Quality – Burnout entre médicos ahrq.gov/professionals/clinicians-providers/ahrq-works/burnout/index.html
Federation of State Physician Health Programs fsphp.org
E-Couch for Mental Health ecouch.anu.edu.au/welcome
APA Toolkit for Well-Being Ambassadors (Kit de ferramentas da APA para embaixadores do bem-estar) APA-Well-being-Ambassador-Toolkit-Manual.pdf
International Doctors in Alcohol Anonymous idaa.org
Adaptado do material da referência 9: Latha G, Matthew K, Sean B. First aid for the psychiatry clerkship, quarta edição. McGraw-Hill Education; 2016

O aprimoramento do atendimento e uso de serviços de saúde mental entre médicos pode ser essencial para salvar vidas. Nos Estados Unidos, uma lista de serviços por estado está disponível no site da Federation of State Physician Health Program (www.fsphp.org). Embora os médicos possam ser relutantes em buscar o próprio cuidado com a saúde, o cerne do problema parece ser a resistência em envolver-se nesses programas devido a preocupações sobre licença. Em uma pesquisa, a maioria dos médicos de medicina emergencial acreditava que as agências estaduais ou os médicos que os atendiam compartilhariam informações confidenciais com autoridades reguladoras.14 Além disso, uma pesquisa no American College of Surgeons observou que 60% dos cirurgiões com pensamentos suicidas sentiam-se relutantes em buscar auxílio médico, por acharem que isso colocaria em risco suas licenças médicas.15 Para combater essa barreira na busca pelo atendimento, muitos estados têm regulamentações que permitem que os médicos omitam o relato de tratamentos para doenças mentais em questionários sobre licenças, desde que estejam cumprindo o tratamento.1 A confidencialidade e a proteção continuarão a ser essenciais para a melhoria do envolvimento de médicos em seu próprio tratamento de saúde mental. Outra possibilidade é que os médicos considerem desafiador o acesso ao atendimento de saúde mental devido às limitações de tempo de seus deveres clínicos. Uma licença de saúde pode afetar o contrato do médico, exigir o relato aberto à administração ou gerar preocupações de ordem prática como perda de renda e explicações sobre a ausência no trabalho para os colegas e para a família.

Os profissionais de saúde devem se preocupar não somente com os pacientes, mas também com seus colegas e com si mesmos. A prevenção é a melhor forma de tratamento e, igualmente, a prevenção primária de suicídio entre médicos deve se concentrar em reformular a cultura na medicina para colocar maior ênfase no bem-estar dos médicos. Isso requer esforços conjuntos de faculdades de medicina para desenvolver a conscientização na próxima geração de médicos e demonstrar ativamente o autocuidado e ensinar essas práticas para seus alunos. Soluções mais imediatas podem começar com o reconhecimento entre os líderes da área da saúde da necessidade de pacotes de benefícios que incluam tempo de afastamento sem penalidades financeiras, afastamento para autocuidado ou melhoria no acesso a serviços de saúde mental, levando os profissionais de saúde mental para as clínicas e hospitais para, assim, reduzir as barreiras de sua utilização.

Para que ocorra o suicídio entre profissionais da saúde, múltiplos estressores devem convergir e pesar na mente até que a carga pareça insuportável. Para que possamos vislumbrar um horizonte mais esperançoso no que diz respeito ao suicídio entre profissional da medicina, melhorias reais na prevenção e na utilização de tratamento devem ser feitas.

 

O Dr. Huang é diretor do programa de Residência em anestesiologia da HCA do Oak Hill Hospital, diretor do programa de Residência do ano transicional da HCA no Oak Hill Hospital e professor no curso de medicina da University of Central Florida. Ele atua no Comitê de educação e treinamento da APSF e no Comitê internacional de colaboração da ASA.

Anthony Brenner, BS, é estudante do terceiro ano de medicina do curso de medicina da University of Central Florida.


Os autores não têm conflitos a declarar.


Referências

  1. Louise B Andrew BEB. Physician suicide. 2018; https://emedicine.medscape.com/article/806779-overview#showall. Accessed September 10, 2018.
  2. Schernhammer ES, Colditz GA. Suicide rates among physicians: a quantitative and gender assessment (meta-analysis). Am J Psychiatry. 2004;161:2295–2302.
  3. Wible P. Keynote: 33 orthopadeic surgeon suicides. How to Prevent #34. 2018; http://www.pamelawible.com/keynote-33-orthopaedic-surgeon-suicides-how-to-prevent-34/. Accessed September 15, 2018.
  4. Center C, Davis M, Detre T, et al. Confronting depression and suicide in physicians: a consensus statement. JAMA. 2003;289:3161–3166.
  5. Hawton K, Malmberg A, Simkin S. Suicide in doctors. A psychological autopsy study. J Psychosom Res. 2004;57:1–4.
  6. Dyrbye LN, Thomas MR, Shanafelt TD. Systematic review of depression, anxiety, and other indicators of psychological distress among U.S. and Canadian medical students. Acad Med. 2006;81:354–373.
  7. Goebert D, Thompson D, Takeshita J, et al. Depressive symptoms in medical students and residents: a multischool study. Acad Med. 2009;84:236–241.
  8. de Oliveira GS, Jr., Chang R, Fitzgerald PC, et al. The prevalence of burnout and depression and their association with adherence to safety and practice standards: a survey of United States anesthesiology trainees. Anesth Analg. 2013;117:182–193.
  9. Latha G, Matthew K, Sean B. First aid for the psychiatry clerkship. Fourth edition. McGraw-Hill Education; 2016.
  10. Tetzlaff JE. Drug diversion, chemical dependence, and anesthesiology. Advances in Anesthesia. 2011;29:113–127.
  11. Booth JV, Grossman D, Moore J, et al. Substance abuse among physicians: a survey of academic anesthesiology programs. Anesth Analg. 2002;95:1024–1030.
  12. Lacy BE, Chan JL. Physician burnout: the hidden health care crisis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2018;16:311–317.
  13. Peckham C. Medscape national physician burnout & depression report 2018. 2018; https://www.medscape.com/slideshow/2018-lifestyle-burnout-depression-6009235. Accessed September 15, 2018.
  14. Andrew LB. Survey Says: Many EPs suffer in silence. 2006; http://epmonthly.com/article/survey-says-many-eps-suffer-in-silence/. Accessed September 9, 2018.
  15. Shanafelt TD, Balch CM, Dyrbye L, et al. Special report: suicidal ideation among American surgeons. Arch Surg. 2011;146:54–62.